A homossexualidade assumida do Cônsul-Geral de Portugal em Macau e Hong Kong e o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas em 2019
Jorge Morbey
«Bonus pater familiae»
«Bonus pater familiae» ou, em português, “bom pai
de família”, foi uma abstração usada pelo Direito Romano para significar a
diligência que a vida em sociedade espera do homem comum. É o comportamemnto do
homem-padrão. O “cliché” do homem casado, com mulher e filhos.
A vigência do Direito romano perdurou desde a fundação de Roma em 753 a.C.,
até à morte do imperador Justiniano, em 565 da nossa era. Ulpiano, jurista
romano, sintetizou em três os conceitos que regiam a sociedade (romana) e,
consequentemente, o sistema legal: não prejudicar ninguém, viver honestamente e
dar a cada um aquilo que lhe corresponde.
É espantoso que, após treze séculos de vigência, de cujo termo se passaram
mais quinze séculos, esta operação intelectual, conhecida por «bonus pater familiae», ocorra frequentemente
nos nossos dias. Visível na prática dos juízes e verificável na jurisprudência
dos tribunais.
Carreiras profissionais
claustrofóbicas, castradoras e indutoras de comportamentos desviantes
As carreiras profissionais estruturadas com forte grau de hierarquização, disciplina
interna do auto-silenciamento perante o superior hierárquico, mudança forçada
frequente de ambiente convivial, podem ser claustrofóbicas, castradoras e
indutoras de comportamentos desviantes.
Entenda-se que, do meu ponto de vista, “comportamentos desviantes”
incluem não apenas práticas homossexuais mas também práticas
heterossexuais. Como seja o processo do Prior de Trancoso cuja sentença, proferida
em 1467 (Torre do Tombo, armário 5.°, maço 7), rezava:
“Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois
anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos
dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em
diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não
contrariou, sendo acusado de ter dormido com vinte e nove afilhadas e tendo
delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos; de cinco irmãs teve dezoito
filhas; de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas; de sete amas teve
vinte e nove filhos e cinco filhas; de duas escravas teve vinte e um filhos e
sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três
filhas, da própria mãe teve dois filhos.”
(Total: duzentos e noventa e nove, sendo duzentos e catorze do sexo
feminino e oitenta e cinco do sexo masculino, tendo concebido em cinquenta e
três mulheres.)
Porém…
… “El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos
dezassete dias do mês de Março de 1487, com o fundamento de ajudar a povoar
aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo e, em proveito de sua real
fazenda, o condena ao degredo em terras de Santa Cruz, para onde segue a viver
na vila da Baía de Salvador como colaborador do povoamento português, e guardar
no Real Arquivo da Torre do Tombo esta sentença, devassa e mais papéis que
formaram o processo. “.
Não foi apenas o Rei. Foi a ‘vox
populi” cuja índole profunda admira e aplaude a virilidade no homem e deseja e
contempla a feminilidade, a beleza e a formosura da mulher.
Nem por isso, deixa de ser excessiva a virilidade do lendário Prior de
Trancoso.
Mais um pouco de História de
Portugal
A História de Portugal, desde 1820,
pode ser vista, de uma óptica dramática, como uma sequência de encenações da realizade
política, assentes no despreso pelo povo, na inaptidão dos políticos e no
arbítrio dos militares. Eça, n’Os Maias,
sintetizou em sequência cénica que “a Marselhesa avança com uma espada nua. O
God Save de Queen adianta-se, arrastando
um manto real../.../ e o Hino da Carta ginga, de rabona.” Sinel de Cordes, general de cavalaria e,
tres vezes, ministro das Finanças, entre
1926 e 1928 que, com Gomes da Costa, Óscar Carmona, Mendes Cabeçadas e Alves
Roçadas, encabeçaram o golpe militar de 28 de Maio de 1926 reconhecia, na
passagem da pasta das Finanças ao Doutor Salazar, que percebia pouco de
Finanças, nomeadamente as das suas próprias algibeiras...
Três carreiras profissionais têm protagonizado movimentos de ruptura com
repercussão social digna de registo histórico, em resultado da acumulação
crescente de tensões no interior das barreiras que isolam certas corporações do
pulsar natural das sociedades: os militares, o clero e a carreira diplomática.
Os militares
O ciclo político actual da nossa História teve início no verão de 1973, quando
o ministro do Exército alterou a contagem da antiguidade dos oficiais milicianos
que optassem por ingressar no Quadro Permanente e lhes proporcionou a passagem a
este Quadro mediante a frequência de um curso intensivo na Academia Militar. Os
oficiais do Quadro Permanente sentiram-se
lesados e, por razões meramente
corporativas, constituíram o Movimento dos Capitães (Évora, 9 de setembro de
1973). Este foi o rastilho que ateou o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974
que entregou as colónias de África aos partidos únicos de obediência soviética,
abandonou Timor à invasão Indonésia e teve de acatar a recusa da China em
retomar Macau de um governo português
controlado pelo Partido Comunista, correia de transmissão da União Soviética,
então.
Nunca houve a coragem de conhecer o elevadíssimo número de africanos
assassinados pelas então novas autoridades pró-soviéticas, na Guiné-Bissau, em
Angola e Moçambique, e nas guerras civis que tiveram lugar nestes dois últimos
países. O preço das liberdades e da democracia que os portugueses possuem, ao
abrigo da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, foi pago
pelo sangue de um número incalculável de africanos mortos pelos então poderes
pró-soviéticos, principalmente na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique.
O Clero: Padre Felicidade Alves (1925-1998)
Natural das Caldas da Rainha, após a instrução primária, entrou para o
seminário, com 11 anos. Em 1948 foi ordenado sacerdote. Destacando-se pela sua
inteligência, foi professor no Seminário de Almada e, depois, no Seminário dos
Olivais. Em 1956 foi nomeado pároco de Santa Maria de Belém, Mosteiro dos
Jerónimos, em Lisboa. No trabalho da paróquia foi dando conta de que o país
real era muito diferente do que pensava e, a partir de 1967, as suas
intervenções começaram a causar incómodo ao regime e à Igreja Católica. O
Almirante Américo Thomaz, Presidente da República e paroquiano de Belém, deixou
de ir à missa dominical nos Jerónimos, com a família. A comunicação que proferiu ao Conselho
Paroquial de Belém, em 19 de Abril de 1968, na presença de muitas dezenas de
pessoas, sob o tema "Perspectivas actuais de transformação nas estruturas
da Igreja", punha em causa a forma como a Igreja se apresentava à
sociedade, a sua organização, o modo como eram transmitidos os ensinamentos
cristãos e a abordagem da própria figura de Deus. A despapalização da Igreja é
um dos seus escritos que conservo, certamente inspirado na ideia de desestalinização
da União Soviética que, obviamente, não tinha lugar na agenda do Partido
Comunista Português a que aderiu após o 25 de Abril de 1974.
Um longo processo determinou, em Novembro de 1968, o afastamento das suas
funções de pároco em Santa Maria de Belém, e, mais tarde, a suspensão das suas
funções sacerdotais, terminando, em 1970, com a sua excomunhão.
Escreveu “Católicos e Política” (1969), “Pessoas Livres” e “É Preciso
Nascer de Novo” (1970). Neste último livro reflecte sobre o casamento. Pouco
depois, casou civilmente, em 1 de Agosto daquele ano. Pôde realizar o seu
casamento pela Igreja em 10 de Junho de 1998, a poucos meses do seu falecimento, na sequência de longo processo junto do
Vaticano, sendo o acto celebrado pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo.
A actual maré agitada do abuso sexual de menores na Igreja não pode resolver-se
apenas pela repressão dos que erram. Tem
de reflectir sobre as razões que conduzem ao erro. Parece poder antever-se a
reformulação da obrigatoriedade do celibato que, todavia, será sempre uma opção
para os mais iluminados pela espiritualidade e que é uma condição tanto mais
distintiva quanto mais elevada a posição na hierarquia das religiões.
A carreira diplomática
Na Primavera de 1972, fui auditor do 1.º Curso de Altos Estudos de Defesa
Nacional (CDN), que se realizou no Instituto de Altos Estudos Militares, em
Pedrouços. O Curso foi frequentado por cerca de 40 auditores, sendo 20
militares e outros tantos civis. Os militares eram os coronéis e capitães de
mar e guerra que tinham acabado de frequentar o Curso de Alto Comando dos respectivos
Ramos. Os civis eram altos funcionários dos diversos Ministérios e
personalidades de reconhecido mérito em várias actividades importantes da vida
nacional. O curso teve a duração de cinco semanas, tendo versado matérias de
natureza militar, económica, política, social, etc. Conheci, então, um dos auditores,
indicado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Regressara, recentemente,
de Lima, no Perú onde fora Embaixador de Portugal. Contava com amargura que
tudo fizera para não seguir para aquele posto, por razões de saúde incompatíveis
com a altitude daquela capital. De modo que, confessava tristemente, mal chegou
à residência do Embaixador de Portugal em Lima, meteu-se na cama e aí
permaneceu até que o MNE, muitos meses
depois, determinasse o termo das suas funções naquele posto e o seu regresso a
Lisboa.
Registei o insólito da situação e procurei encontrar explicação para
semelhante anomalia. Fiquei a saber que o Secretário-Geral do Ministério dos
Negócios Estrangeiros é o equivalente civil aos chefes de Estado Maior nos três
ramos das Forças Armadas, isto é, o chefe da carreira diplomática e o
responsável máximo pela gestão do MNE. Então procurei saber que solução seria
dada a uma situação semelhante nos tres ramos das Forças Armadas. Sorte minha,
um coronel meu conhecido, mobilizado para Angola, fora substituído e
encontrava-se internado no Hospital Militar na Boa-Hora, à Ajuda, em Lisboa, por
lhe ter sido diagnosticada tuberculose. Nunca percebi a história do Embaixador de
Portugal acamado complulsivamente...
Nem outras histórias onde é nítida a desumanidade com que a estrutura
tutelar dos diplomatas parece tratá-los.
Como a de um casal de embaixadores que, corroídos pela morte do filho por
overdose, em mais do que uma capital europeia, se embebedavam a tal ponto, nas
recepções para que eram convidados, que acabavam a noite arrastados e atirados
para o interior de um táxi que os levava de regresso a casa.
Ao longo da vida e, especialmente, nos anos em que estive colocado nas
embaixadas de Portugal, em Pequim e em Bangkok (1990-99), convivi com muitos
diplomatas, nacionais e estrangeiros. No geral, gente boa, sem excluir muitas
taras e uma ou outra “ovelha ronhosa”. Tendo ficado com a ideia de que a carreira diplomática será a carreira
profissional com maior percentagem de homossesuais em exercício de funções,
procurei estudar o fenómeno. Cerca de dez anos de uma variedade de dados
recolhidos, principalmente, em entrevistas que contêm interessantes histórias
de vida.
Entre um número volumoso de dados, apenas três ou quatro, com a devida
reserva:
Uma Secretária de Estado detentora de informação abundante sobre a “Internacional Rosa” e o seu Grão Mestre,
diplomata português, nesse tempo.
Um assessor diplomático de Primeiro-Ministro, heterosexual público e
notório que, obtida a nomeação de um seu adjunto homossexual, defendia-se da
risota num grupo de amigos, alegando querer estar devidamente informado do que se passava no
interior do lobby gay do seu
ministério.
Um chefe de missão que defendia com entusiástica convicção que o casamento
ideal era o que unia um gay e uma lésbica que – garantia - praticava com sucesso.
Um chefe de missão, heterosexual, homem e diplomata medíocre, que visitava
na prisão, um diplomata homossexual, envolvido no processo Casa Pia, para não
cair em desgraça ante o lobby gay do
seu ministério.
Casamento civil entre
pessoas do mesmo sexo
A Assembleia da República aprovou com 126 votos a favor, 97 contra e 7
abstenções, no dia 8 de Janeiro de 2010, o acesso ao casamento civil entre
pessoas do mesmo sexo. A lei foi
aprovada na especialidade no dia 11 de fevereiro de 2010 e analisada pelo
Tribunal Constitucional que não suscitou questões de constitucionalidade em 8 de Abril. A 17 de Maio,
o Presidente da República promulgou a lei. Deste modo, Portugal passou a ser o
oitavo país do mundo a realizar em todo território nacional casamentos civis
entre pessoas do mesmo sexo, juntando-se aos Países Baixos, Espanha, Bélgica,
África do Sul, Canadá, Noruega e Suécia.
Esta alteração legislativa catapultou para as conservatórias de registos de
casamento as pessoas do mesmo sexo que passaram a poder legalizar a sua
relação.
No que toca à Carreira Diplomática, deu brado o jantar e a festa de
casamento, em 17 de Dezembro de 2017, do Embaixador de Portugal em Bangkok com
um cidadão americano, nos jardins da mesma Embaixada.
A ideia que vai passando é a de uma nova geração de diplomatas homossexuais
que rompeu com o recato que os seus predecessores com a mesma orientação sexual e desafia abertamente os sectores mais
conservadores da sociedade com um frentismo inundado e colorido de orgulho gay.
Semana de África 2019, em
Macau
Decorreu, entre 21 e 28 de Maio, organizada pelas associações dos PALOP, a
Semana de África 2019. Organizadores e participantes têm razões de se
orgulharem pelos sucessos alcançados.
Participei em várias actividades, nomeadamente no jantar que teve lugar no
Roosevelt Hotel, na Taipa. Terá estado presente o Cônsul-Geral de Portugal. Não
o conheço. Causou-me algum desconforto ouvir certas graças do tipo: vê lá se
isso se pega; pega de empurrão; a Pátria está a ficar mal frequentada, etc.
Os convites para a recepção
do Dia de Portugal 2019, na residência Consular
A chegada, aos respectivos destinatários, dos convites para a recepção do
Dia de Portugal na Residência Consular, terá surpreendido toda a gente. Recebi
inúmeras chamadas telefónicas de pessoas que receberam o convite, indagando o
que era “aquilo” que vinha a seguir ao nome do Consul-Geral. A todos dei o palpite: deve ser o nome do
indivíduo com quem o Cônsul-Geral é casado...
Mas o ambiente, entre os portugueses de Macau, não está sereno: planos de
escrever na fachada do Bela Vista, em letras garrafais, Casa de P...; de arrear
ali a bandeira nacional e içar a bandeira do arco-iris; e outras manifestações
de desagrado e protesto, têm sido veementemente desaconselhadas por mim. Tenho
sugerido: que declinem o convite os que pressintam desconforto; e tenho recomendado
que compareçam os que não sintam constrangimentos.
Percebo e partilho o sentimento de escândalo e vergonha dos portugueses de
Macau, de que não possuo nenhum mandato de representação.
Desejo - e tentarei - que esta prosa chegue às mãos do Secretário-Geral do
MNE, Embaixador Álvaro Mendonça e Moura e
que tenha a virtude de nele irromper o rasgo: de humanizar as colocações do
Corpo Diplomático; de não desconsiderar
as comunidades portuguesas que não se revêem em diplomatas homossexuais; e, sobretudo, de descobrir o justo equilíbrio
entre o «bonus pater familiae» e o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
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