Sunday 24 October 2021

 A homossexualidade assumida do Cônsul-Geral de Portugal em Macau e Hong Kong e o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas em 2019

Jorge Morbey

«Bonus pater familiae»

«Bonus pater familiae» ou, em português,  “bom pai de família”, foi uma abstração usada pelo Direito Romano para significar a diligência que a vida em sociedade espera do homem comum. É o comportamemnto do homem-padrão. O “cliché” do homem casado, com mulher e filhos.

A vigência do Direito romano perdurou desde a fundação de Roma em 753 a.C., até à morte do imperador Justiniano, em 565 da nossa era. Ulpiano, jurista romano, sintetizou em três os conceitos que regiam a sociedade (romana) e, consequentemente, o sistema legal: não prejudicar ninguém, viver honestamente e dar a cada um aquilo que lhe corresponde.

É espantoso que, após treze séculos de vigência, de cujo termo se passaram mais quinze séculos, esta operação intelectual, conhecida por  «bonus pater familiae», ocorra frequentemente nos nossos dias. Visível na prática dos juízes e verificável na jurisprudência dos tribunais.

Carreiras profissionais claustrofóbicas, castradoras e indutoras de comportamentos desviantes

As carreiras profissionais estruturadas com forte grau de hierarquização, disciplina interna do auto-silenciamento perante o superior hierárquico, mudança forçada frequente de ambiente convivial, podem ser claustrofóbicas, castradoras e indutoras de comportamentos desviantes.

Entenda-se que, do meu ponto de vista, “comportamentos  desviantes”  incluem não apenas práticas homossexuais mas também práticas heterossexuais. Como seja o processo do Prior de Trancoso cuja sentença, proferida em 1467 (Torre do Tombo, armário 5.°, maço 7), rezava:

“Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido com vinte e nove afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos; de cinco irmãs teve dezoito filhas; de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas; de sete amas teve vinte e nove filhos e cinco filhas; de duas escravas teve vinte e um filhos e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas, da própria mãe teve dois filhos.”

(Total: duzentos e noventa e nove, sendo duzentos e catorze do sexo feminino e oitenta e cinco do sexo masculino, tendo concebido em cinquenta e três mulheres.)

Porém…

… “El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos dezassete dias do mês de Março de 1487, com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo e, em proveito de sua real fazenda, o condena ao degredo em terras de Santa Cruz, para onde segue a viver na vila da Baía de Salvador como colaborador do povoamento português, e guardar no Real Arquivo da Torre do Tombo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o processo. “.

Não foi apenas o Rei. Foi  a ‘vox populi” cuja índole profunda admira e aplaude a virilidade no homem e deseja e contempla a feminilidade, a beleza e a formosura da mulher.

Nem por isso, deixa de ser excessiva a virilidade do lendário Prior de Trancoso.

Mais um pouco de História de Portugal

 A História de Portugal, desde 1820, pode ser vista, de uma óptica dramática, como uma sequência de encenações da realizade política, assentes no despreso pelo povo, na inaptidão dos políticos e no arbítrio dos militares.  Eça, n’Os Maias, sintetizou em sequência cénica que “a Marselhesa avança com uma espada nua. O God Save de Queen  adianta-se, arrastando um manto real../.../ e o Hino da Carta ginga, de rabona.”   Sinel de Cordes, general de cavalaria e, tres vezes,  ministro das Finanças, entre 1926 e 1928 que, com Gomes da Costa, Óscar Carmona, Mendes Cabeçadas e Alves Roçadas, encabeçaram o golpe militar de 28 de Maio de 1926 reconhecia, na passagem da pasta das Finanças ao Doutor Salazar, que percebia pouco de Finanças, nomeadamente as das suas próprias algibeiras...     

Três carreiras profissionais têm protagonizado movimentos de ruptura com repercussão social digna de registo histórico, em resultado da acumulação crescente de tensões no interior das barreiras que isolam certas corporações do pulsar natural das sociedades: os militares, o clero e a carreira diplomática.

Os militares

O ciclo político actual da nossa História teve início no verão de 1973, quando o ministro do Exército alterou a contagem da antiguidade dos oficiais milicianos que optassem por ingressar no Quadro Permanente e lhes proporcionou a passagem a este Quadro mediante a frequência de um curso intensivo na Academia Militar. Os oficiais do Quadro Permanente  sentiram-se lesados e,  por razões meramente corporativas, constituíram o Movimento dos Capitães (Évora, 9 de setembro de 1973). Este foi o rastilho que ateou o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 que entregou as colónias de África aos partidos únicos de obediência soviética, abandonou Timor à invasão Indonésia e teve de acatar a recusa da China em retomar Macau de um governo  português controlado pelo Partido Comunista, correia de transmissão da União Soviética, então.

Nunca houve a coragem de conhecer o elevadíssimo número de africanos assassinados pelas então novas autoridades pró-soviéticas, na Guiné-Bissau, em Angola e Moçambique, e nas guerras civis que tiveram lugar nestes dois últimos países. O preço das liberdades e da democracia que os portugueses possuem, ao abrigo da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, foi pago pelo sangue de um número incalculável de africanos mortos pelos então poderes pró-soviéticos, principalmente na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique.

O Clero: Padre Felicidade Alves (1925-1998)

Natural das Caldas da Rainha, após a instrução primária, entrou para o seminário, com 11 anos. Em 1948 foi ordenado sacerdote. Destacando-se pela sua inteligência, foi professor no Seminário de Almada e, depois, no Seminário dos Olivais. Em 1956 foi nomeado pároco de Santa Maria de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. No trabalho da paróquia foi dando conta de que o país real era muito diferente do que pensava e, a partir de 1967, as suas intervenções começaram a causar incómodo ao regime e à Igreja Católica. O Almirante Américo Thomaz, Presidente da República e paroquiano de Belém, deixou de ir à missa dominical nos Jerónimos, com a família.  A comunicação que proferiu ao Conselho Paroquial de Belém, em 19 de Abril de 1968, na presença de muitas dezenas de pessoas, sob o tema "Perspectivas actuais de transformação nas estruturas da Igreja", punha em causa a forma como a Igreja se apresentava à sociedade, a sua organização, o modo como eram transmitidos os ensinamentos cristãos e a abordagem da própria figura de Deus. A despapalização da Igreja é um dos seus escritos que conservo, certamente inspirado na ideia de desestalinização da União Soviética que, obviamente, não tinha lugar na agenda do Partido Comunista Português a que aderiu após o 25 de Abril de 1974.

Um longo processo determinou, em Novembro de 1968, o afastamento das suas funções de pároco em Santa Maria de Belém, e, mais tarde, a suspensão das suas funções sacerdotais, terminando, em 1970, com a sua excomunhão.

Escreveu “Católicos e Política” (1969), “Pessoas Livres” e “É Preciso Nascer de Novo” (1970). Neste último livro reflecte sobre o casamento. Pouco depois, casou civilmente, em 1 de Agosto daquele ano. Pôde realizar o seu casamento pela Igreja em 10 de Junho de 1998, a poucos meses do seu falecimento,  na sequência de longo processo junto do Vaticano, sendo o acto celebrado pelo Cardeal Patriarca de  Lisboa, D. José Policarpo.

A actual maré agitada do abuso sexual de menores na Igreja não pode resolver-se apenas pela  repressão dos que erram. Tem de reflectir sobre as razões que conduzem ao erro. Parece poder antever-se a reformulação da obrigatoriedade do celibato que, todavia, será sempre uma opção para os mais iluminados pela espiritualidade e que é uma condição tanto mais distintiva quanto mais elevada a posição na hierarquia das religiões.   

A carreira diplomática

Na Primavera de 1972, fui auditor do 1.º Curso de Altos Estudos de Defesa Nacional (CDN), que se realizou no Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços. O Curso foi frequentado por cerca de 40 auditores, sendo 20 militares e outros tantos civis. Os militares eram os coronéis e capitães de mar e guerra que tinham acabado de frequentar o Curso de Alto Comando dos respectivos Ramos. Os civis eram altos funcionários dos diversos Ministérios e personalidades de reconhecido mérito em várias actividades importantes da vida nacional. O curso teve a duração de cinco semanas, tendo versado matérias de natureza militar, económica, política, social, etc. Conheci, então, um dos auditores, indicado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Regressara, recentemente, de Lima, no Perú onde fora Embaixador de Portugal. Contava com amargura que tudo fizera para não seguir para aquele posto, por razões de saúde incompatíveis com a altitude daquela capital. De modo que, confessava tristemente, mal chegou à residência do Embaixador de Portugal em Lima, meteu-se na cama e aí permaneceu  até que o MNE, muitos meses depois, determinasse o termo das suas funções naquele posto e o seu regresso a Lisboa.

Registei o insólito da situação e procurei encontrar explicação para semelhante anomalia. Fiquei a saber que o Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros é o equivalente civil aos chefes de Estado Maior nos três ramos das Forças Armadas, isto é, o chefe da carreira diplomática e o responsável máximo pela gestão do MNE. Então procurei saber que solução seria dada a uma situação semelhante nos tres ramos das Forças Armadas. Sorte minha, um coronel meu conhecido, mobilizado para Angola, fora substituído e encontrava-se internado no Hospital Militar na Boa-Hora, à Ajuda, em Lisboa, por lhe ter sido diagnosticada tuberculose. Nunca percebi a história do Embaixador de Portugal acamado complulsivamente...

Nem outras histórias onde é nítida a desumanidade com que a estrutura tutelar dos diplomatas parece  tratá-los. Como a de um casal de embaixadores que, corroídos pela morte do filho por overdose, em mais do que uma capital europeia, se embebedavam a tal ponto, nas recepções para que eram convidados, que acabavam a noite arrastados e atirados para o interior de um táxi que os levava de regresso a casa.

Ao longo da vida e, especialmente, nos anos em que estive colocado nas embaixadas de Portugal, em Pequim e em Bangkok (1990-99), convivi com muitos diplomatas, nacionais e estrangeiros. No geral, gente boa, sem excluir muitas taras e uma ou outra “ovelha ronhosa”. Tendo ficado com a ideia de  que a carreira diplomática será a carreira profissional com maior percentagem de homossesuais em exercício de funções, procurei estudar o fenómeno. Cerca de dez anos de uma variedade de dados recolhidos, principalmente, em entrevistas que contêm interessantes histórias de vida.

Entre um número volumoso de dados, apenas três ou quatro, com a devida reserva: 

Uma Secretária de Estado detentora de informação abundante sobre a  “Internacional Rosa” e o seu Grão Mestre, diplomata português, nesse tempo. 

Um assessor diplomático de Primeiro-Ministro, heterosexual público e notório que, obtida a nomeação de um seu adjunto homossexual, defendia-se da risota num grupo de amigos, alegando querer estar  devidamente informado do que se passava no interior do lobby gay do seu ministério.

Um chefe de missão que defendia com entusiástica convicção que o casamento ideal era o que unia um gay e uma lésbica que – garantia -   praticava com sucesso.  

Um chefe de missão, heterosexual, homem e diplomata medíocre, que visitava na prisão, um diplomata homossexual, envolvido no processo Casa Pia, para não cair em desgraça ante o lobby gay do seu ministério.

Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo

A Assembleia da República aprovou com 126 votos a favor, 97 contra e 7 abstenções, no dia 8 de Janeiro de 2010, o acesso ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.  A lei foi aprovada na especialidade no dia 11 de fevereiro de 2010 e analisada pelo Tribunal Constitucional que não suscitou questões  de constitucionalidade em 8 de Abril. A 17 de Maio, o Presidente da República promulgou a lei. Deste modo, Portugal passou a ser o oitavo país do mundo a realizar em todo território nacional casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo, juntando-se aos Países Baixos, Espanha, Bélgica, África do Sul, Canadá, Noruega e Suécia.

Esta alteração legislativa catapultou para as conservatórias de registos de casamento as pessoas do mesmo sexo que passaram a poder legalizar a sua relação.

No que toca à Carreira Diplomática, deu brado o jantar e a festa de casamento, em 17 de Dezembro de 2017, do Embaixador de Portugal em Bangkok com um cidadão americano, nos jardins da mesma Embaixada.

A ideia que vai passando é a de uma nova geração de diplomatas homossexuais que rompeu com o recato que os seus  predecessores com a mesma orientação sexual e  desafia abertamente os sectores mais conservadores da sociedade com um frentismo inundado e colorido de orgulho gay.

Semana de África 2019, em Macau  

Decorreu, entre 21 e 28 de Maio, organizada pelas associações dos PALOP, a Semana de África 2019. Organizadores e participantes têm razões de se orgulharem  pelos sucessos alcançados. Participei em várias actividades, nomeadamente no jantar que teve lugar no Roosevelt Hotel, na Taipa. Terá estado presente o Cônsul-Geral de Portugal. Não o conheço. Causou-me algum desconforto ouvir certas graças do tipo: vê lá se isso se pega; pega de empurrão; a Pátria está a ficar mal frequentada, etc.

Os convites para a recepção do Dia de Portugal 2019, na residência Consular

A chegada, aos respectivos destinatários, dos convites para a recepção do Dia de Portugal na Residência Consular, terá surpreendido toda a gente. Recebi inúmeras chamadas telefónicas de pessoas que receberam o convite, indagando o que era “aquilo” que vinha a seguir ao nome do Consul-Geral.  A todos dei o palpite: deve ser o nome do indivíduo com quem o Cônsul-Geral é casado...

Mas o ambiente, entre os portugueses de Macau, não está sereno: planos de escrever na fachada do Bela Vista, em letras garrafais, Casa de P...; de arrear ali a bandeira nacional e içar a bandeira do arco-iris; e outras manifestações de desagrado e protesto, têm sido veementemente desaconselhadas por mim. Tenho sugerido: que declinem o convite os que pressintam desconforto; e tenho recomendado que compareçam os que não sintam constrangimentos.

Percebo e partilho o sentimento de escândalo e vergonha dos portugueses de Macau, de que não possuo nenhum mandato de representação.

Desejo - e tentarei - que esta prosa chegue às mãos do Secretário-Geral do MNE,  Embaixador Álvaro Mendonça e Moura e que tenha a virtude de nele irromper o rasgo: de humanizar as colocações do Corpo Diplomático;  de não desconsiderar as comunidades portuguesas que não se revêem em diplomatas homossexuais;  e, sobretudo, de descobrir o justo equilíbrio entre o  «bonus pater familiae» e  o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.     

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