Da identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente
Jorge Morbey
Todo o conhecimento exige
um conceito, por mais imperfeito que ele possa ser.
Emmanuel Kant (1724-1804)
“O presidente do Instituto Camões, Luís Faro Ramos, destacou o entusiasmo "notável" dos macaenses que querem aprender português como parte da sua afirmação de identidade”. !?!?!?!?!?!?!?!?! (Hoje Macau : 27.3.2019 : p. 7)
1. Nem todo o natural de Macau é Macaense
Entre outras coisas estranhas que acontecem em Portugal, impressionam-me
os “fenómenos do Entroncamento” e as
jeiras (para usar o léxico corrente do crioulo de Korlai) a perder de vista,
onde germinam os sábios que governam o País, que dirigem a Administração
Pública e que dão brilho aos Institutos Públicos, do género do Instituto
Camões.
Macau, à parte, graças a Deus, apesar das incontáveis horas de trabalho e
concentração da cintilante inteligência do seu Chefe do Executivo e dos seus
leais ajudantes, na procura vã de talentos que, simplesmente, não existem.
O presidente da autarquia entroncamentense defende que os fenómenos não são
um mito, mas sim algo que “nos deve agradar porque nos diferencia das outras
regiões e das outras cidades”. Admite tratar-se de “uma marca distintiva que
não tem sido trabalhada”, à qual o executivo camarário pretende “dar mais
consistência” com uma nova candidatura a fundos comunitários que permita
desenvolver “alguma iniciativa de natureza cultural”.
Durante a II Grande Guerra era o volfrâmio. Agora dão pelo nome de “fundos
comunitários”. Essa arte portuguesa...
A História parece registar uma incompatibilidade irreconciliável dos Macaenses
com estes “sábios” de uma antropologia que não existe. Na primeira
metade da década de oitenta do século passado, um “sábio” de semelhante estirpe
chamou eunucos culturais aos Macaenses. Ficou impune. Talvez porque era
“apenas” director dos Serviços de Educação de Macau.
Agora, é o próprio presidente do Instituto Camões da Cooperação e da
Língua, dependente do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, que vem
ofender a memória de muitos Macaenses, Ilustres e Patriotas, e seus
descendentes, em Macau, em Portugal e noutras partes onde vive e labuta a
Diáspora Macaense...
Não se trata de um “lapsus linguae”!
Referir-se aos Macaenses com a “ternura” que habitualmente se usa para
descrever cãezinhos dóceis, de olhar meigo e rabinho a abanar, é ofensa grave e
inadmissível. Revela inaptidão insanável para dirigir o organismo charneira da
articulação de Portugal (da sua Língua, da sua Cultura e da sua Economia) com o
Mundo.
Bradamos em defesa da Memória secular de Macau e em homenagem a todas as
Famílias Macaenses: Airosa, Amante, Anok, António, Assis, Assumpção, Azedo,
Badaraco, Basto, Batalha, Borralho, Boyol, Braga, Carion, Colaço, Conceição,
Cordeiro, Cruz, Demée, Dias, Eça, Estorninho, Fonseca, Gaan, Gracias, Grandpré,
Guterres, Hagatong, Hyndman, Jesus, Jorge, Leitão, Líger, Lobo, Lubeck, Maas,
Madeira de Carvalho, Magalhães, Manhão, Monteiro, Moor, Nolasco, Noronha,
Pedruco, Peres, Pessanha, Pinto Marques, Placé, Prado, Rangel, Rego, Remédios,
Ritchie, Robarts, Rosa, Rozário, Sá, Sales, Senna Fernandes, Sequeira, Xavier e
outras mais, involuntariamente omitidas
Historicamente, a população de Macau tem duas componentes étnicas
principais: Han-chineses (principalmente das províncias de Guangdong e Fujian)
e Portugueses, da Europa (reinóis/metropolitanos) e Euro-asiáticos (macaenses).
O primeiro recenseamento da população em Portugal (1527-1532) registou a
existência de uma população cujo total se situava entre 1 e 1,5 milhão de
pessoas.
A miscigenação dos portugueses com os povos orientais levou a um aumento da
população portuguesa no Mundo e ao aparecimento das primeiras gerações de
portugueses euro-asiáticos, no século XVI.
Miscigenação (latim miscere "misturar" + género "tipo")
é a mistura de diferentes etnias através do casamento, da coabitação ou,
simplesmente, de relações sexuais.
Um grupo étnico é uma população humana cujos membros se identificam entre
si, geralmente com base numa genealogia ou ancestralidade comum (Smith, 1986).
Grupos étnicos também são geralmente unidos por práticas culturais,
comportamentais, linguísticas ou religiosas comuns. Neste sentido, um grupo
étnico é também uma comunidade cultural.
Já tarda a reacção do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Doutor Augusto
Santos Silva. Serão parentes, também?
2. A identidade colectiva das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente
A hibridação cultural dos portugueses euro-asiáticos do Oriente foi reforçada pela cristianização dos povos com os quais os portugueses estabeleceram relações duradouras, nas regiões litorais do Indico e do Pacífico. Mesmo hoje em dia, os termos “cristão” e “português” são sinónimos, em certas partes do Oriente. E entre os povos orientais, o estereótipo do português não corresponde ao tipo somático do português originário da Península Ibérica, mas ao dos euro-asiáticos descendentes dos portugueses que vivem em comunidades que habitam as regiões litorais do Índico e do Pacífico.
Por alguns séculos, estas comunidades que eu designo por Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, foram a única referência de Portugal e dos portugueses, entre os povos vizinhos delas.
Tenho verificado a sinonímia entre “cristão” e “português” e a substituição do estereótipo ibérico do português pelo estereótipo do português euro-asiático:
Em 1965, na minha primeira visita a Macau, ao hospedar-me num hotel em Hong Kong, o recepcionista, chinês local, perguntou qual era a minha nacionalidade. Respondi-lhe que era português e ele, imediatamente, declarou: - eu também sou cristão.
Em 1985, num hotel em Malaca, em conversa com uma jovem malasiana, ao ouvir a mesma resposta, ela exclamou: - Você está a brincar! Você é alto e tem cabelos, pele e olhos claros. Os portugueses são mais baixos e muito mais escuros.
É claro que ela estava a referir-se aos portugueses de Malaca.
Em geral, identidade significa mesmice, uniformidade, semelhança.
Do ponto de vista social, ”identidade” é o carácter colectivo que resulta das características comuns dos membros de um grupo. Designa-se “identidade colectiva” e tem uma personalidade básica subjacente.
A transferência de domínios coloniais entre países europeus – de Portugal católico para a Holanda protestante, principalmente - constituiu o pano de fundo em que emergiram as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente.
Com a substituição da dominação portuguesa pela holandesa, permanecendo nas terras que as viram nascer, deportadas para outras paragens, ou forçadas à emigração, essas comunidades mestiças talharam a sua identidade colectiva que perdurou até aos nossos dias, assente em três pilares principais: a religião católica, a língua crioula e a gastronomia portuguesa, recriada localmente.
A religião católica fora trazida para o Oriente, pelos portugueses, directamente de Portugal ou através de Goa – a Roma do Oriente. Convertidos ou nascidos nela, com ela haveriam de morrer, geração após geração.
A sua língua – o crioulo - era a língua portuguesa na formulação que lhe conferira o estatuto de língua franca nos litorais da Ásia e da Oceania, desde o Século XVI, até à sua substituição pelo inglês, no Século XIX. Após um século em que os portugueses eram o único povo europeu conhecido no Oriente, holandeses, ingleses e dinamarqueses não podiam prescindir de um “língoa” ou “jurubaça” [intérprete], a bordo dos seus navios, para poderem comerciar nos portos do Oriente, na língua que era - nada mais, nada menos – aquela que as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente falavam e, muitas delas, ainda falam. Tratados, entre esses países europeus e alguns poderes locais, foram firmados em português, por ser a única língua a que os europeus podiam recorrer para comunicar no Oriente, ainda que contra os interesses dos portugueses.
A forte identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente cimentou-se em grande parte na adversidade. O conflito religioso nascido na Europa, entre católicos e protestantes, ramificou-se por todas as paragens do Oriente onde o poderio holandês derrubou o de Portugal e se firmou. A profanação e a destruição de igrejas e mosteiros, a expulsão dos padres, a proibição de qualquer acto de culto católico, as deportações maciças, a redução de muitos à condição de escravos, compeliram os membros dessas cristandades à clandestinidade, à resistência e à emigração: Macau, Índia, Insulíndia, Sião e Indochina foram os seus destinos principais.
Os que teimavam em ficar, escondidos em suas casas ou refugiados nas florestas, celebravam como podiam os actos de culto da religião católica. Sem padres e sem igrejas, organizaram-se em irmandades clandestinas que, ao fim de décadas, produziram fenómenos de cristalização cultural, de natureza religiosa e linguística que impediriam, por séculos, a sua plena integração nas paróquias criadas posteriormente. Tais irmandades permaneceram até aos nossos dias e conservam determinadas prerrogativas que limitam a autoridade dos párocos, o que é visível em algumas celebrações onde os sacerdotes se limitam à Eucaristia e à Confissão dos fiéis porque, em tudo o mais, quem manda é a Irmandade.
Quando a dominação holandesa foi substituída pela inglesa, as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente foram ficando menos oprimidas e, em alguns casos, foram as próprias autoridades coloniais britânicas a tomar a iniciativa de lhes facultar padres portugueses, novamente.
Perdida a confiança que a Santa Sé depositara desde o Século XV em Sua Magestade Fidelíssima o Rei de Portugal, na sequência do corte de relações diplomáticas, por iniciativa do Governo liberal, em 1833, e a extinção das ordens religiosas, por decreto de 31 de Maio de 1834, o Padroado Português do Oriente sofreu um golpe mortal, na Índia, no Ceilão, hoje Sri-Lanka, no Sudeste Asiático, na China e na Oceania. Permanecendo, os que podiam, nas suas missões, os missionários do Padroado não seriam substituídos pelos seus confrades. O clero secular de Goa, numeroso e bem preparado, acorria em socorro das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente que iam ficando sem religiosos. Quase sempre em vão. Os missionários da Propaganda Fidae e das Missions Étrangères de Paris já as ocupavam e os respectivos vigários apostólicos impediam-lhes o exercício do seu múnus. A expansão missionária francesa no Oriente começara ainda no século XVII.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, gente simples e temente a Deus, mantidas na ignorância dos conflitos entre Portugal e a Santa Sé, lutaram anos sem fim contra as novas autoridades eclesiásticas com quem conflituavam abertamente e às quais consideravam estrangeiras. Durante décadas pagaram o elevado preço de lhes serem recusados os sacramentos a que só esporadicamente tinham acesso quando aportava um navio com um sacerdote, ainda que espanhol. Clamaram sempre pelo envio de clero. De Portugal, de Goa ou de Macau. Em vão.
A firme identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, ainda hoje, evita o casamento dos seus membros com indivíduos exteriores a elas e prefere que os futuros cônjuges provenham do seu seio ou de outras cristandades, ainda que distantes. Quando assim não acontece e o casamento une um membro da Comunidade a alguém que a ela não pertence, a regra é a conversão deste à religião católica e a aprendizagem da língua crioula.
Algumas dessas comunidades fruem um status social digno nos países onde vivem. Outras, porém, são socialmente desqualificadas e os seus membros são depreciativamente designados por “negros”, apesar da sua côr mais clara, da pele, do cabelo e dos olhos, relativamente aos naturais com outras origens étnicas. É o que acontece na Birmânia/Myanmar.
A nível individual, nos países onde vivem, podem encontrar-se indivíduos originários destas comunidades nos mais elevados estratos da sociedade: do mundo da política à actividade empresarial, nas mais elevadas funções da hierarquia eclesiástica ou como simples párocos de aldeia. Onde se verifique a existência de uma significativa percentagem de membros destas comunidades no clero católico, isso parece resultar da intensa discriminação de que são objecto no acesso ao ensino público e ao mercado de trabalho, público e privado. Em geral, dedicam-se a actividades modestas. São pequenos proprietários, simples trabalhadores agrícolas ou pescadores.
A língua crioula falou-se também nas Cristandades Crioulas Lusófonas da Tailândia – Ayutia e, posteriormente, Bangkok - até aos anos 50 do Século XX, onde permanecem vocábulos de uso corrente no relacionamento familiar e nas práticas da religião católica. Na Indonésia, além de Java, na ilha das Flores (Larantuka e Sikka), nas ilhas de Ternate e Tidore e em Bali. Em Timor (Lifau e Bidau). No Bangladesh (Chittagong e Dhaka), até aos anos 20 do século XX, era muito viva a presença da língua crioula nas Cristandades locais. Na segunda metade da década de noventa, numa breve passagem de poucas horas em Dacca, pude certificar-me da existência de léxico crioulo entre os católicos de Dhaka.
A pequena Cristandade Crioula Lusófona de Korlai (junto a Chaúl), na Índia, somente em 1982 seria revelada ao Mundo por Laurentiu Theban. O seu crioulo é designado por Kristi.
A Cristandade Crioula Lusófona da Birmânia – Myanmar actualmente – já não usa a língua crioula e, ao contrário das demais, perdeu com o tempo os próprios nomes e apelidos cristãos/portugueses, apesar de permanecer fiel à religião católica.
Com a descolonização das antigas colónias portuguesas de África foi restituído aos seus povos o direito de decidirem sobre as suas línguas nacionais. Em todas elas o português foi adoptado como língua oficial, ao mesmo tempo que se reconheceu expontânea dignidade às línguas maternas dos seus povos.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, substituído o domínio português, permaneceram sob domínio colonial europeu que as hostilizava ou, pelo menos, não dignificava. Assim permaneceram até à independência dos países em que se encontram, onde constituem minorias com reputação variável em cada um deles. Por naturais razões de unidade do Estado, esses países mantiveram como língua oficial o inglês, a língua do último colonizador, e privilegiam uma ou mais das suas línguas maternas como língua nacional.
O poder colonial inglês não descolonizou as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, no sentido de restituir dignidade à sua identidade colectiva, de que a língua crioula faz parte integrante, o que, aliás, não era de esperar. Nem é de esperar que os poderes pós-coloniais de motu proprio venham a dedicar-lhes a atenção a que têm direito.
A incapacidade de Portugal nesta matéria tem sido uma evidência secular, filha da ignorância e do preconceito.
Língua e Cultura Portuguesa nos Países do Índico e do Pacífico
Em 1986, para além do reduzidíssimo uso do português entre a população chinesa de Macau (97% da população total), em toda a vasta região do Índico e do Pacífico, a língua e a cultura portuguesa tinham uma presença insignificante: o ICALP, antecessor do actual Instituto Camões, presidido por Fernando Cristóvão, mantinha um leitor no então Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim e uma caricatura de leitorado na East Asia University, na ilha da Taipa; o Instituto de Línguas Estrangeiras de Xangai tinha um professor recrutado no Brasil; as universidades japonesas, com licenciatura em Estudos Portugueses, face à decisão insólita do ICALP de despedir os seus leitores naquele País, decidiram contratá-los. Entre as atribuições do Instituto Cultural de Macau, criado em 1982, incluiam-se: “Promover a preservação dos valores da Cultura Portuguesa e a sua difusão nas vizinhas áreas geográficas” e “Promover a difusão da Língua Portuguesa e o estudo da história portuguesa e suas relações com povos do Extremo Oriente”. Daí resultou a assinatura de um protocolo (inspirado em Tordesilhas) que colocava os países da região do Índico e do Pacífico na esfera de competência do Instituto Cultural de Macau, presidido por Jorge Morbey. No ano lectivo de 1986/87: abriu-se o leitorado da Universidade de Jinan, em Cantão, onde trezentos estudantes chineses de Macau frequentavam diversas licenciaturas; preparou-se a abertura do leitorado na Universidade de Estudos Internacionais de Xangai; e organizou-se o I Curso de Férias de Língua e Cultura Portuguesa para 33 estudantes universitários de Cantão, Xangai, Pequim e da Universidade Nacional da Malasia. No ano lectivo de 1987/88, subsidiou-se o leitorado da Universidade de Estudos Estrangeiros de Kyoto, abriu-se o segundo leitorado da East Asia Universirty, o segundo leitorado da Universidade de Jinan e organizou-se o II Curso de Férias para 91 estudantes universitários de Cantão, East Asia, Pequim, Taipé, Kyoto e Sta. Bárbara (Califórnia). No ano lectivo de 1988/89, entraram em funcionamento os leitorados da Universidade Malaya, em Kuala Lumpur, da Universidade de Pusan, na Coreia do Sul e da Universidade de Chulalongkorn, na Tailândia, e concluiram-se as negociações com as Universidades de Hua Qiao, na Povíncia de Fujian.
3. Portugal e a falta de solidariedade com as Cristandades Crioulas Lusosófonas do Oriente
A incapacidade de Portugal nesta matéria é uma evidência secular. Filha da
ignorância e do preconceito, como atestam alguns exemplos que se registam de
seguida e que ocorreram num intervalo de tempo pluri-secular:
O Bispo de Macau, D. Alexandre Pedrosa Guimarães, em carta ao Rei D. José
I, de 22 de Dezembro de 1774, refere que as mulheres macaenses “falam uma
linguagem, que é mistura de todos os idiomas e gírias, imperceptível aos que
não são criados no país, por culpa dos maridos e pais de família, que há dois
séculos não cuidaram em introduzir o idioma português correcto, sobre o que vou
trabalhando, por ser esta coisa aquela em que cuidam todas as nações em seus
domínios”.
José Joaquim Lopes de Lima, oficial
de marinha e administrador colonial, governador de Timor que cedeu a ilha das
Flores aos holandeses, no seu “Ensaios sobre a Statistica das Possessões
Portuguesas no Ultramar..” (1844) dá uma pequena amostra da desconsideração e
desrespeito nutrido em relação às Cristandades Crioulas e à língua por elas
falada. No que respeita ao Crioulo de Cabo Verde, classificava-o de “gíria
ridícula, composto monstruoso de antigo Portuguez, e das Linguas de Guiné, que
aquelle povo tanto présa, e os mesmos brancos se comprazem a imitar”.
Em 1988, na qualidade de Presidente do Instituto Cultural de Macau,
devidamente autorizado pelo Governador, transmiti ao Secretário da Conferência
Episcopal Portuguesa, D. Albino Cleto, a disponibilidade do Governo de Macau em
apoiar a ida de religiosos portugueses para a Missão de S José de Singapura e
para a paróquia de S. Pedro de Malaca. Nessa altura já se encontravam retirados,
por doença e velhice, os últimos padres portugueses enviados pelo Bispo de
Macau. Respondeu-me S. E. Reverendíssima - de um modo que me pareceu tocado de
algum complexo colonial - que a iniciativa deveria partir do Arcebispo e Bispo
respectivos. Sugeri que, ao menos, a Conferência Episcopal Portuguesa os
convidasse para as comemorações do Centenário da Missionação e, nessa altura,
se abordasse o assunto. Nem o Arcebispo de Singapura, nem o Bispo de Malaca
estiveram nessas comemorações.
Os portugueses euro-asiáticos são originários das regiões costeiras do Índico e do Pacífico onde os portugueses europeus, africanos e de outras regiões da Ásia e da Oceania se estabeleceram e com cujos povos mantiveram relações duradouras, desde o século XVI. São católicos-romanos e falam um crioulo de base portuguesa.
Conferência em Malaca
Sob o título
“RESSURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO PAPIÁ-CRISTÃO E DO PATRIMÓNIO
MALACO-PORTUGUÊS”, reuniram-se em Malaca intelectuais e académicos,
luso-descendentes de Malaca, malaios e de outros países, incluindo Portugal, no
fim de semana de 6 e 7 de Janeiro de 1996.
A convite da
Comissão Organizadora do encontro, liderada pela luso-descendente de Malaca
Joan Margaret Marbeck, presidiu à Conferência o Dr. Jorge Morbey, Conselheiro
Cultural da Embaixada de Portugal em Bangkok. Esta Embaixada, além de representar
Portugal na Tailândia, assegura as relações diplomáticas com o Camboja, Laos,
Malásia, Myanmar, Singapura e Vietname.
Na sessão de
abertura, Joan Marbeck, falando em Papiá-Cristão e Inglês, agradeceu a presença
dos convidados e os apoios recebidos de entidades de Malaca e do Instituto
Português do Oriente, afirmando a dado passo que “na descoberta daquilo que nos
distingue, temos de manejar elementos de identidade e de integração com o
máximo cuidado. Não é nosso desejo sermos separatistas. Pelo contrário, desejamos empenharmo-nos no património
colectivo com outras comunidades e, ao mesmo tempo, preservar os valores
Kristang.”
Referindo-se
concretamente ao estado actual do Papiá-Cristão que, de acordo com alguns
linguistas está dando os seus últimos passos, afirmou dever preservar-se o
sonho de consolidar a língua materna da sua Comunidade na Malásia plurilingue,
pondo de parte ideias feitas e apostando no seu renascimento, através da
formulação de um plano de acção em direcção ao ano 2000, a ser apresentado ao
Primeiro-Ministro da Malásia, Dr. Mahatir Bin Mohamad.
A primeira
comunicação foi apresentada por Gerard Fernandis, secretário do Conselho do
Regedor do Bairro Português e assistente do Consul Honorário de Portugal em
Kuala Lumpur. Chamou a atenção para as consequências dos planos de
desenvolvimento em curso em que se prevê um vasto aterro na zona ribeirinha do Bairro Português de
Malaca, afastando o mar para longe das casas dos pescadores que
constituem ainda 30 % da Comunidade. A dado passo, afirmou: “Aceitamos o
desenvolvimento, mas não à custa do
nosso bem-estar económico e cultural. O
Estado, a Comunidade e os investidores têm de entender que é forçoso o crescimento
da Comunidade a par do desenvolvimento e que os aspectos culturais têm de ser
preservados”.
Para preservar o
património português de Malaca, Gerard Fernandis apelou a “Portugal e às
Fundações portuguesas”, enfatizando que a Religião Católica é o elemento
aglutinador e identificador da Comunidade Kristang e que os elementos mais
visíveis do seu património são o Papiá-Cristão, a música e a dança.
Intervindo a
seguir, o Dr. Mário Pinharanda Nunes,
leitor de Português na Universidade Malaya, em Kuala Lumpur, apresentou
um conjunto de reflexões intituladas “Ressurgimento do Papiá-Cristão: Reflexões
sobre como promover o renascimento do Papiá-Cristão em Malaca e em outras
partes da Malásia”. Defendendo que o
Leitorado pode desempenhar um papel importante no renascimento do Papiá-Cristão,
deu testemunho da sua própria experiência pessoal que, ao ensino de línguas
estrangeiras, se alargou ao interesse pelo Kristang e pelos Crioulos em geral.
Opondo-se frontalmente à afirmação de que o Papiá-Cristão é já uma língua
morta, o Dr. Pinharanda Nunes manifestou a convicção de que tal ideia resulta
do menor número de Luso-descendentes de Malaca que o falam actualmente, em
comparação com o que se passava nos decénios anteriores, à aparente perda de
prestígio no conjunto das línguas faladas na Malásia - quando foi uma das
principais durante a ocupação portuguesa e após ela - e ao desconhecimento da
sua existência por parte de muitos malaios, mesmo daqueles que trabalham na
área das línguas.
Sobre a situação
actual do Papiá-Cristão, afirmou: “se por um lado o seu renascimento implica o
crescimento do número dos seus falantes, o qual requer o seu ensino, por outro
lado podemos entender por renascimento apenas atribuir-lhe um maior valor na opinião pública e difundir o conhecimento
da sua existência”. Para a primeira hipótese, o Dr. Pinharanda Nunes
sublinhou a necessidade de um mais
exacto conhecimento do número de falantes, dos actos de fala em que o usam, com
quem e com que frequência o falam, concluindo tornar-se necessário um trabalho
de pesquisa, para avaliação do número de falantes e, assim, para avaliar a
dimensão exacta da necessidade do ensino do Kristang.
Justificando a
importância desse trabalho de investigação por se ter confrontado com números
contraditórios sobre os falantes de Papiá-Cristão, o Dr. Pinharanda Nunes informou
que elaborou um questionário para colheita dos dados entre as famílias
Kristang, a realizar brevemente, e que os
resultados e o respectivo relatório serão submetidos ao Conselho do
Regedor e facultados a qualquer instituição malaia ou pessoa que o julgue útil
para a definição de uma política de ensino do Papiá-Cristão.
Abordando em
seguida a questão relativa à necessidade de materiais de ensino, referiu ser
indispensável a normalização da ortografia do Papiá-Cristão, através da
cooperação entre falantes locais e linguistas especializados na transcrição de
línguas orais, para a fixação da sua ortografia oficial, à semelhança do que
aconteceu com algumas das línguas do Sarawak..
Relativamente à
contribuição do Leitorado de Português no renascimento do Papiá-Cristão, o Dr.
Pinharanda Nunes lembrou que o ensino do Português foi introduzido na
Universidade Malaya desde 1988, destinado aos estudantes do Departamento de
Linguística, mas também com cursos abertos a outras pessoas que desejem
aprendê-lo. “À primeira vista, pode parecer improvável que isso ajude a
renascer ou a promover o conhecimento do Kristang. Contudo, assim não é. Todos os anos, cerca de
cinquenta licenciados do Leitorado de português aprendem também algo sobre o
Papiá-Cristão. Um dos principais objectivos do ensino do Português aqui, é o de
promover o interesse entre os estudantes na elaboração de estudos e
investigação nesta língua ou na sua influência em outras línguas,
designadamente o Malaio e o Papiá-Cristão. Tive um estudante que concluiu a
licenciatura com uma tese sobre palavras portuguesas na língua malaia. Mas
ainda não tive quem escolhesse o Kristang como tema de investigação. Contudo,
sei que outros colegas que estão orientando teses de licenciatura têm estado
recentemente a encorajar os seus estudantes na investigação do Papiá -Cristão.
Tenho a certeza que ao ter-se iniciado o ensino do Português aqui, despertou-se a atenção para a relevância da
investigação em tal matéria.”
Em seguida, o
Dr. Pinharanda Nunes apresentou um balanço
da acção cultural do Leitorado de Português na Universidade Malaya, em
coordenação com os Serviços Culturais da Embaixada de Portugal em Bangkok, para
concluir que na respectiva acção de divulgação da Cultura Portuguesa, a
Comunidade de Luso-descendentes de Malaca em toda a Malásia pode beneficiar
bastante, propondo empenhar-se para que um maior número de eventos culturais
portugueses em Bangkok e Kuala Lumpur possam também ser levados a Malaca,
incrementando os contactos entre os Luso-descendentes e a Cultura Portuguesa
dos nossos dias.
No domingo, dia
7, os trabalhos da Conferência abriram com a comunicação do Prof. Pierre
Guisan, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sua intervenção centrou-se
em aspectos técnico-linguísticos e históricos que não corresponderam às
expectativas dos membros presentes da Comunidade de Luso-descendentes de
Malaca, tendo em conta que o orador fez a sua tese de mestrado sobre o
Papiá-Cristão. Defendeu que a Comunidade
deveria rejeitar a ideia de que descende dos portugueses e classificou os
Crioulos como “línguas derrotadas”.
O desagrado com
que tais teses foram recebidas pelos presentes foi expresso pelo Dr. Jorge
Morbey no debate que se seguiu, ao
afirmar: “Negar a origem portuguesa dos Luso-descendentes é um modo de
interpretação soviética da História por pretender apagar factos históricos
incontroversos, o que é inaceitável. E é
também um erro monstruoso classificar os Crioulos como ‘línguas derrotadas’. A
origem histórica dos Crioulos situa-se na ‘Língua Franca’, cuja utilidade e
prestígio levaram os holandeses, desde o
século XVII, a procurar
difundi-los entre as populações que dominaram nesta região do Mundo. Os navios
holandeses e ingleses, até finais do século XVIII, não dispensavam a existência
de um ‘língoa’ a bordo (designação portuguesa antiga de intérprete), para
comerciarem em Português, tantas vezes acrioulado, nos portos que escalavam.
Muitos tratados entre holandeses e ingleses com os poderes locais no litoral
asiático foram redigidos em Português. Apenas no século XIX, após a instalação
do clima que propiciou a agudização do fenómeno colonial marcado pela Conferência de Berlim, em 1885,
com a doutrina da ocupação efectiva dos territórios e a desqualificação social,
económica e cultural de Povos de vastas regiões, em quatro dos cinco
continentes, as línguas locais - incluindo os Crioulos - foram remetidas para
um estatuto de inferioridade fundado em
puro racismo e sem nenhum fundamento científico. Mas essa enfermidade de que o
Mundo padeceu durante um século aproximadamente pertence ao passado. As línguas
de todos os Povos recebem hoje o tributo inerente à sua eminente dignidade. Tendo-se tornado
independentes, antigas colónias elegeram o seu Crioulo como Língua Nacional -
ainda que mantenham também como língua oficial o idioma dos colonizadores - e
os Crioulos reganharam o seu estatuto de línguas de cultura e comércio dos
nacionais de diversos países.
Seguiu-se a
comunicação do Dr. Jorge Morbey intitulada “Papiá-Cristão: o eterno abraço da
Cultura Portuguesa ao Sueste Asiático”, apresentada em Português e com
traduções em Inglês e em Crioulo de Cabo Verde (S. Vicente). Defendendo que “a
preservação do Papiá-Cristão é vital se a Comunidade Cristã de Malaca quiser
manter-se fiel à sua própria Cultura”, chamou a atenção para a necessidade de
se conhecer o número dos respectivos falantes nas últimas décadas, “não só em
Malaca, como também nas diversas partes da Malásia e em Singapura”,
desagregando-o segundo escalões etários. A verificar-se a diminuição do número
de falantes entre os que têm menos de dez anos, “uma solução parcial poderia
ser a criação de jardins infantis onde o Papiá-Cristão fosse ministrado em
regime de imersão total”.
Afirmando estar
convicto que os participantes locais estão em melhores condições para apontar
as medidas mais correctas para o renascimento do Papiá-Cristão, sugeriu um
conjunto de questões para ponderação pela Comunidade: viabilidade de um estatuto de língua oficial
no contexto multilingue da Malásia; língua
de opção nas escolas, a requerimento de um mínimo de estudantes; tempos de
emissão nas estações de rádio e televisão;
e possibilidade legal de se fundarem estações locais de rádio e
televisão.
Reflectindo a
sua naturalidade caboverdeana, o Dr. Jorge Morbey afirmou ser “herdeiro do
património comum de todos nós: a Língua Portuguesa que se tornou Língua Franca,
há quinhentos anos”, acrescentando, “o Papiá-Cristão e o Crioulo de Cabo Verde
- que tenho o orgulho de falar como língua materna - são línguas irmãs com
várias outras da mesma origem: os Crioulos indo-portugueses em Diu, Damão,
Korlai, Mangalor, Cananor, Mahé e Cochim, o Crioulo do Sri-Lanka, o Patois
macaense, o Crioulo de Java e os Crioulos da Guiné-Bissau e de S. Tomé e
Príncipe.
Identificando os
Crioulos que se tornaram línguas nacionais, admitiu a existência de razões
compreensíveis de natureza política, para os outros Crioulos que são línguas
circunscritas a determinadas minorias nacionais, afirmando que “o diferente
estatuto político entre os Crioulos não priva aqueles que não são línguas
nacionais do direito ao respeito e de receberem apoio dos governos dos países a
cujo património nacional pertencem”.
Preconizando a
internacionalização da questão dos Crioulos, o Dr. Jorge Morbey defendeu que “o
robustecimento de cada Crioulo não é apenas um assunto interno dos países onde
são falados. Todos nós, falantes de Crioulo, temos de iniciar um trabalho
conjunto no entendimento da dimensão universal do nosso património comum”,
unindo as diversas comunidades falantes de Crioulo para a estruturação dos
interesses comuns.
Finalizando a sua intervenção, o Dr. Morbey afirmou
esperar que num futuro próximo “representantes das nossas Comunidades se
encontrem para se conhecerem, para trocarem experiências e para procederem ao
inventário das nossas necessidades”.
A última
comunicação apresentada à Conferência foi da autoria da Profa. Hyacinth
Gaudart, da Faculdade de Educação da Universidade Malaya em Kuala Lumpur que
explicou o complexo Sistema Educativo da Malásia, em consequência da enorme
variedade de línguas acolhidas nos diversos graus de ensino do País. Sustentando a incontroversa legalidade de
introduzir o Papiá-Cristão como língua de ensino, “bastando que quinze pais o
requeiram”, asseverou que não vê
possibilidade prática de que tal aconteça num futuro próximo, dada a inexistência de professores
habilitados, de materiais de ensino, e de técnicos habilitados para os
produzirem, para além de outras questões complicadas.
Em seu entender,
a solução possível a mais curto prazo poderia assemelhar-se à que foi
encontrada para o ensino veiculado em
japonês. Isso passaria pelo forte
empenho do Governo Português em recursos materiais e humanos e implicaria a
adopção do Português moderno como língua veicular no ensino, em detrimento do
Papiá-Cristão. A seu ver, esta solução seria muito mais vantajosa para a
Comunidade Cristã de Malaca que, em lugar de ficar confinada aos reduzidos
limites do Kristang na Malásia, passaria a dispôr de um amplo acesso ao Mundo
através do Português moderno.
No termo da Conferência, foram elaboradas as
seguintes conclusões:
1. Dar início ao incremento do
Papiá-Cristão na educação infantil dos membros da Comunidade;
2. Diligenciar a formação universitária
em Portugal de jovens da Comunidade de modo a poderem empenhar-se no ensino do
Português e do Papiá-Cristão, após regressarem à Malásia;
3. Realizar um trabalho de pesquisa para
avaliação do número de Luso-descendentes interessados na aprendizagem do Papiá-Cristão;
4. Prosseguir a publicação da secção de
lições de Papiá-Cristão, no jornal “Nobis”;
5. Constituir um grupo de trabalho para
a elaboração de um manual de ensino do “Papiá-Cristão”;
6. Dirigir um pedido ao Bispo de
Malaca-Johore para que providencie a colocação de um sacerdote português em
Malaca;
7. Investigar sobre a viabilidade de
instalação de uma agência, balcão ou escritório de um banco Português em
Malaca;
8. Avaliar as possibilidades que a
Comunidade Cristã de Malaca tem para se ligar à Comunidade de Povos de Língua
Portuguesa;
9. Cooperar na realização de um encontro
periódico de representantes das comunidades falantes de Crioulo;
10. Propôr a organização de um Pavilhão
representativo das comunidades falantes de Crioulo na EXPO 98.
En síntese, nesta Conferência, abordaram-se temas da maior importância, Não só para os luso-descendentes de Malaca, mas também, para a dimensão universal de Portugal que não a de um rebotalho da Europa:
- as dificuldades que sobreviriam para os pescadores, representando 30% da Comunidade, em consequência dos planos de desenvolvimento local que previam extensos aterros, afastando o mar para longe das suas casas;
- o estudo, então em curso, para avaliação do número de falantes do Crioulo [Kristang] e das necessidades para o respectivo ensino, por inciativa do Dr. Mário Pinharanda Nunes, então leitor de português em Kuala Lumpur;
- o crescente interesse da população estudantil da Malásia, espelhado em teses versando a influência do Português sobre o Malaio e de docentes universitários daquele país empenhados em trabalhos de investigação sobre o Papiá-Cristão;
- a sumariação dos crioulos existentes no mundo, seus diferentes estatutos, intercâmbio dos seus falantes para troca de experiências, inventário das respectivas necessidades, modos de entreajuda e internacionalização desse património comum espalhado por vários países;
- a complexidade do sistema educativo da Malásia em que coexistem várias línguas e que permite a inclusão de qualquer idioma – incluindo o Papiá-Cristão e o Português padrão – mediante requerimento de quinze pais ou encarregados de educação.
Expressa ou implicitamente, os oradores apelaram ao apoio de “Portugal e das Fundações Portuguesas”. Estávamos no início do ano de 1996. Uma das dez conclusões da Conferência consistiu no pedido de avaliação das possibilidades de ligação das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente à Comunidade de Povos de Língua Portuguesa (CPLP). Outra propunha que Portugal viabilizasse a organização de um pavilhão das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente na EXPO 98.
Tudo foi transmitido ao Governo português pelos canais habituais. A primeira resposta recebida enviava o preçário de arrendamento dos pavilhões! Insistiu-se, através de nova diligência, procurando explicar melhor o sentido e alcance do que se pretendia. A resposta, ignorante, foi a de que cada Comunidade deveria diligenciar a sua inclusão nas representações dos respectivos países. Assim se encerrou definitivamente o assunto. A surdez, quando causada pela burrice, é mais irritante e cansativa...
Como me referiu o Arcebispo Emérito de Mandalay, na Birmânia, U Than Aung - descendente de portugueses - onde a maioria do clero católico é de origem portuguesa e cuja Comunidade tem as suas origens na cidade de Pegú no ano de 1600, quem nunca recebeu a mais ténue manifestação de solidariedade de Portugal nada tem a esperar daí.
Há de reconhecer-se que este Portugal do nosso tempo que esquece os “seus”, constrói Mesquitas, e anseia escancarar as suas portas às vítimas que sobrevivem à travessia do Mediterrâneo, padece de doença grave e, provavelmente, incurável, do foro psiquiátrico.
4. O que poderão as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente esperar de Portugal?
Reflectindo quanto baste, parece poder concluir-se que:
Não rendem votos aos partidos politicos portugueses, nem remessas de
divisas, como as provenientes dos lucrativos emigrantes portugueses na Europa,
no Continente Americano, na Austrália e na Nova Zelândia. Em consequência: não há espaço num
departamento governamental semelhante àquele que os sucessivos governos nunca
se esquecem de ter: uma Secretaria de Estado para a Emigração ou dos Negócios
Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, conforme a semântica política mais ao
gosto de cada maioria parlamentar. Nem cabem aí.
Não proporcionam negócios, nem representam quota de mercado nas exportações
portuguesas. Em consequência: não há espaço num departamento governamental
semelhante aos que se dedicam à cooperação com a África ou a Europa. Nem cabem
aí.
Não proporcionam receitas ao Fisco e à Segurança Social portuguesa, nem a
sua força de trabalho está à disposição de empresários portugueses. Em
consequência: não há espaço em estruturas do tipo Alto Comissariado para as
Minorias Étnicas e Imigração. Nem cabem aí.
Na estrutura do Governo e da Administração em Portugal não existe espaço
nem atenção para as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente. Porque elas não
são lucrativas para os cofres do Estado. Porque o Estado se habituou à vida
fácil de, por lei ou por medidas administrativas, sobrecarregar os
contribuintes com impostos e taxas que sucessivos (des)governos vão dissipando,
em alegre paralisia ante a eurodestruição da economia portuguesa.
Por outro lado, ex-ricas instituições privadas de utilidade pública,
criadas à custa de muito dinheiro levado de Macau para Portugal, em condições
que não dignificaram o País e que, em princípio, deveriam prestar atenção às
Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente - saber onde estão, quantos são, que
carências têm e as potencialidades que nelas existem - encaram as poucas de
cuja existência vagamente sabem, como criaturas interessantes a que, de vez em
quando, se dão uns “amendoins” com o afecto próprio do visitante de uma aldeia
de macacos num qualquer jardim zoológico.
A Universidade de S. José, em Macau, herdeira do património espiritual do
glorioso Padroado Português do Oriente, ingloriamente desaparecido, que gerou
espiritualmente as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, terá uma palavra
a dizer, um tempo para sobre elas reflectir e um espaço institucional para
elas? Fiz esta pergunta na comunicação
que apresentei, em Fevereiro de 2011, na Conferência "A Lusofonia entre
Encruzilhadas Culturais", organizada, precisamente, pela Universidade de
S. José... Parece não ser assunto que interesse. O seu objectivo mais
importante, parece, é ser reconhecida como universidade chinesa...
As Missões Portuguesas nos Estreitos, Malaca e Singapura, deixaram de
existir em 1 de Julho de 1981, na sequência dos acordos celebrados entre o
Bispo de Macau, D. Arquimínio da Costa, e os Bispos James Soorn Ceong, de
Malaka-Johor, e Gregory Yong Soon Nghean, Arcebispo de Singapura, em 26 de
Julho de 1977 e ratificados por decreto da Santa Sé, de 27 de Maio de 1981.
A Missão Portuguesa de Malaca, desde a concordata de 23 de Junho de 1886,
estava sujeita à dupla jurisdição exercida pelo Bispo de Macau e pelo Bispo de
Malaca e incluía as igrejas de S. Pedro e de N. Senhora da Assunção e outras
capelas. A Igreja de S. Pedro manteve as suas funções de Igreja paroquial e os
seus padres continuaram a servi-las sob a autoridade do Bispo de Malaca,
enquanto o Bispo de Macau o permitisse. Morreram os Padres Augusto Sendirn e
Manuel Pintado, últimos missionários portugueses em Malaca.
A Missão Portuguesa de Singapura compreendia a Igreja Paroquial de S. José
que dependia do Bispo de Macau. Enquanto paróquia deixou de existir passando às
funções de simples igreja de devoção e os seus padres continuaram a servi-la -
padres Francisco António Bata e João Guterres. O sustento e as despesas destes
padres continuaram sob a responsabilidade do Bispo de Macau. Os bens - imóveis
e móveis - da Igreja de S. José continuaram a pertencer-lhe, sendo
administrados pelo respectivo Reitor e sob controlo do Arcebispo de Singapura,
enquanto o Bispo de Macau continuasse a enviar missionários. Quando isto
deixasse de se verificar, seria realizado um acordo sobre a transferência civil
desses bens. As outras propriedades pertencentes à Missão Portuguesa (Comission
for the Administraüon of the States of Portuguese Mission in China) não
entraram neste Acordo.
A Diocese de Macau foi, portanto, o último reduto do Padroado Português do
Oriente. Não esteve, o Senhor Bispo D. José Lai, na disposição de convidar os
bispos das dioceses onde vivem as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente
para uma conferência em que se desse início ao trabalho de unir as pontas desta
teia cuja destruição teve início com o corte das relações diplomáticas por
iniciativa do Governo liberal português em 1833 e a extinção das ordens
religiosas, por decreto de 31 de Maio de 1834.
Agora é tarde. Macau tem um Bispo estranho à Igreja de Macau.
Provavelmente, para preparar a sua transformação em paróquia de Hong Kong ou de
Cantão. Estabelecida como Diocese em
1576, uma das maiores dioceses do Mundo em área territorial, dela nasceram as
dioceses de Funai-Nagasaki (1588), Nanjing (1658), Hanoi (1659), Hong Kong
(1841), Guangdong-Guangxi (1848), Dili (1940), Malaca-Johor (1981).
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente são comunidades de
portugueses excluídos, apesar do seu forte sentimento de pertença a Portugal,
da sua fidelidade secular à Religião Católica e do seu património linguístico –
o crioulo – a que chamam “Portugis”.
Ainda assim – ou talvez por isso mesmo - estão excluídas da Lusofonia.
Mas o desconsolo maior, excluídos da Lusofonia somos todos nós. Porque apesar do denominador comum que é a Língua Portuguesa, padrão ou crioula, enquanto estivermos privados da liberdade básica de todas as outras que é o direito de estar e de ir de um lado para o outro, “jus manendi, ambulandi eunde ultro citroque”, a CPLP pode ser tudo o que quiserem. Não é de certeza uma Comunidade inclusiva de povos livres de circularem no espaço que se diz pertencer-lhes.
5. O fenómeno colonial e as “fonias”
O fenómeno colonial, na sua formulação pura e dura, consistiu na validação
entre as potências coloniais dos seus interesses de exploração em África.
Formalmente assumida no Acto Geral da Conferência de Berlim, em 1885. Aí, muito
antes de Shengen, Portugal viu-se forçado a aderir ao discurso europeu. A
ocupação efectiva dos territórios africanos vinha ao arrepio da sua própria
tradição e muito para além da sua capacidade económica, social e militar.
O anticolonialismo do Século XX e a descolonização foi um facto sem
precedentes na História da Expansão Europeia. Centrou-se no objectivo
impreterível de reconquista da Soberania pelos povos colonizados.
O Século XIX assistira à secessão das colónias americanas dos respectivos
países ibéricos. O Século XVIII assistira à independência das colónias inglesas
da América do Norte. À excepção do Canadá. Para aí se deslocaram os colonos que
preferiram manter-se leais à Coroa Britânica. Ficaram conhecidos por United
Empire Loyalists.
A independência das colónias americanas foi um fenómeno “sui generis”. Os
respectivos territórios não foram restituídos aos seus povos originários. Foram
entregues aos europeus e seus descendentes que aí se tinham estabelecido.
A descolonização dos Séculos XVIII e XIX constituiu, portanto, o resultado
da secessão de interesses em conflito. Que opunham europeus geograficamente
separados pelo Atlântico. Mas unidos pela mesma cultura e pela mesma língua.
O Século XVII tinha sido a época de consolidação de uma nova ordem europeia
no domínio do Mundo. O seu exclusivo, ditado em Tordesilhas, deixou de
pertencer aos países ibéricos. Foi derrubado e substituído por holandeses,
ingleses e franceses, em várias partes.
A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, resultou da
acção da Reforma iniciada com Martim Lutero. Reforma que levou ao esvaziamento
do poder central europeu pela autoridade pontifícia romana que vigorava desde a
queda do Império Romano.
A Lusofonia como, aliás, a Francofonia, a Hispanofonia e a Anglofonia, são
espaços que radicam no fenómeno colonial. Assentam no uso da língua do
ex-colonizador como cimento aglutinador. No interior das antigas colónias; nas
relações entre elas; e com as metrópoles do passado.
Em tais espaços, procura-se decantar a História de episódios de força e
opressão; transformar em amigos, anteriores inimigos; substituir a violência
pretérita pelo diálogo; suprir a antiga exploração pela moderna cooperação.
Ao contrário das teses que sustentam que tais espaços existem para manter o
espírito colonial, parece que no seu estádio actual eles serão pouco mais do
que áreas de catarse ou expiação.
E não parece que possam ir mais além, pelos fortes compromissos existentes entre os ex-países colonizadores, no seio da União Europeia. Compromissos que inviabilizam irremediavelmente a sua participação plena em qualquer outra “Comunidade de Povos”. O Acordo de Shengen inviabiliza qualquer expectativa de livre circulação de cidadãos das antigas colónias no território das antigas metrópoles. Apesar de pertencerem à mesma comunidade linguística – anglófona, francófona hispanófona ou lusófona.
6. Portugueses em Macau
A historiografia de Macau não é unânime quanto à data do estabelecimento
dos portugueses neste minúsculo porto do sul da China. Existe uma variação entre os anos de 1549 e
1557.
Os portugueses que se estabeleceram em Macau, no início e ao longo dos séculos, não foram apenas os
nascidos no território europeu de Portugal, mas também portugueses
euro-asiáticos, asiáticos convertidos à religião católica, euro-africanos e
africanos. Estes, na documentação primária, são denominados “cafres”,
frequentemente.
Essa teia de portugueses que se
identificam como “portugis” ou “cristang” localizam-se: na Índia: Diu, Damão, Dadrá, Nagar-Aveli,
Goa, Korlai, Mangalore, Cananor, Mahé, Cochim, Bombaim, Negappattinam; no Sri
Lanka: Batticaloa, Trincomalee e Puttalam; na Indonésia: Bali, Java, [Tugu e
Brestagi], perto de Djacarta, Ilha de Flores [Larantuka e Sikka], Ilhas de
Ternate e Tidore; na Malásia: Alor Star, Penang, Perak, Kuala Lumpur, Seremban
e Johor Baru]; em Singapura; na Tailândia [Bangkok]; no Bangladesh: Chittagong
e Daca; em Mianmar [Sirião].
O destino dos macaenses foi diferente do dos portugueses da Indonésia, da
Malásia e do Sri Lanka, por terem
defendido a sua terra, pela força das armas, contra várias tentativas de invasão e ocupação pelos
holandeses, desde 1603, nomeadamente, pela “Retumbante vitória definitiva
alcançada por Macau sobre os holandeses comandados por Kornelis Reyerszoom que,
com 14 navios e 800 homens, pretendeu tomar a cidade. O inimigo foi completamente desbaratado ante o indómito
esforço dos macaenses, capitaneados pelo denodado herói Lopo Sarmento de
Carvalho. Colaboração do Pe. Rho S.J. (de passagem em Macau) a partir da
Fortaleza do Monte, e protecção do Santo do Dia, S. João Baptista, em 24 de Junho de 1622 (Cfr. Beatriz Basto da Silva : Cronologia da História de Macau).
Os Macaenses
Os descendentes dos portugueses,
nascidos em Macau e, posteriormente, na diáspora macaense, são os macaenses.
Macaense é o euro-asiático de
ascendência portuguesa nascido em Macau.
O conceito de Macaense contém três
elementos:
- Origem étnica mista: europeia
e asiática;
- Ascendência portuguesa;
- Macau e a diáspora Macaense como local de nascimento: Hong Kong, Xangai,
Tianjin, Bangkok e, mais
recentemente, Austrália, Canadá, Brasil, E. U. América e Portugal.
A independência dos territórios ultramarinos de Portugal, a perda da
nacionalidade portuguesa comum dos seus naturais (DL 308-A/75, de 25 de Junho)
e a emergência de novas nacionalidades em cada um deles, parece tornar obsoleto
o elemento “ascendência portuguesa”, no conceito de macaense. A substituição de
“ascendência portuguesa” por “ascendência lusófona” é inviável por não preencher relações de parentesco e por excluir boa
parte das populações dos países de língua oficial portuguesa que não falam
português.
Por outro lado, durante várias décadas, ao longo do séc. XX, os
contingentes de tropa africana em Macau, provenientes de Angola, Moçambique e
Guiné, deixaram descendência, exclusiva ou principalmente, com mulheres
chinesas, de que julgo não existirem registos. De tais descendentes, de homem
africano com mulher chinesa, não há notícia de terem beneficiado do estatuto de
macaense. Conheci de vista uma mulher, filha de mãe chinesa e pai africano
(Landim, de Moçambique), que era “criada de servir”. Desses sino-africanos ou
afro-chineses, cujo número se desconhece, não há notícia de nenhum ter recebido
o estatuto social de macaense.
7. As diferentes identidades dos habitantes de Macau
Em Portugal, a referência a pessoas
de determinada localidade expressa-se, pelo adjectivo derivado do nome da mesma
localidade. Por exemplo: lisboeta é o natural de Lisboa, ou gente de Lisboa. Na
China, a forma para designar a naturalidade é semelhante. Por exemplo: Beijing
ren, Xangai ren (gente de Pequim, gente de Xangai).
No caso de Macau, único em todo o território da China, Ao Men ren (gente de Macau, em mandarim) Ou
Mun yan (em cantonense) é uma designação que não inclui toda a população de
Macau. Na minuciosa especificação que os chineses fazem da população de
Macau, Ao Men ren ou Ou Mun yan não
significa toda a população de Macau. Significa, apenas, a população chinesa de
Macau.
Os macaenses são designados, pelos
chineses de Macau, por “t’ou-san” (filhos e filhas da terra, habitantes
locais).
A população chinesa de Macau distingue os portugueses em: macaenses e
reinóis, ou metropolitanos. Aos euro-asiáticos ou macaenses chamam “t’ou-san”, como já se disse. Aos “portugueses de Portugal” chamam “Kuai-lôu”
(gíria: diabo, ele ou ela). E especificam ainda o género: “ngau-sôk” (lit.: tio
boi) e “ngaû-pó”(lit.: mulher vaca).
Por seu lado, os macaenses distinguem-se dos chineses. Tradicionalmente
autodenominavam-se “macaístas” ou
“maquistas” e designavam os chineses por “chinas”.
Os chineses de Macau que recebiam o baptismo e adquiriam um nome
cristão/português eram conhecidos por “chong cao” (convertido ao cristianismo,
novo cristão).
O peso social dos macaenses em Macau outorgou-lhes a distinção social “t’ou-san” que, ao mesmo tempo, impede “Ao Men Ren” ou “Ou Mun yan” de
significar “todos os naturais de Macau”, como acontece em todas as localidades
do Continente. Isto significa que, do ponto de vista dos chineses de Macau, a
sua terra é uma singularíssima excepção na China. É deles. Mas é, também,
dos macaenses.
O fenómeno da miscegenação não é vulgar no interior da China. Quando existe alguém, meio chinês e meio estrangeiro, a designação é “Hun Xue Er”, literalmente: misturado; mestiço.
8. A Mulher na Família
Macaense
“1600 – Macau conta na sua população com 600 famílias indo-portuguesas”
(B.B. Silva : ob. cit.)
“1635 – António Bocarro diz na sua Descrição de Macau:
Os cazados que tem esta cidade são oitocentos sincoenta portugueses e seus
filhos que são muito mais bem
dispostos, e robustos, que nenhum que haja neste oriente, os quaes todos tem
huns e outros seis escravos darmas de que os mais e milhores são cafres e
outras naçoens(...).
Além deste número de cazados Portuguezes tem mais esta cidade outros tantos
cazados entre naturais da terra, Chinas
Christãos que chamam jurubassas de q’ são os mais, e outras nações xtãos (...).
Tem alem disto esta cidade muitos marinheiros pilotos e mestres solteiros
Portuguezes os mais delles cazados no Reino, outros solteiros que andão, nas
viagens de Japão, Manila, Solor, Macassar, Cochinchina, destes mais de cento e
sincoenta, e alguns são de grossos cabedais de mais de sincoenta mil xerafins
que por nenhũ modo querem passar a Goa por não lançarē mão delles ou as
justiças de Sua Magde. e assy tambem muitos mercadores solteiros muito ricos em
que melitão as mesmas razões”. (idem).
Ao longo do século XVII, apenas uma mulher portuguesa (europeia) existiu em
Macau (MONTEIRO: 2007). Peter Mundi afirmou também que, em 1632 - quase um
século depois do estabelecimento dos portugueses em Macau - não existia na
cidade mais do que uma mulher europeia, sendo as outras mestiças,
euro-asiáticas.
Sobre a participação da mulher chinesa na construção da sociedade macaense,
a historiografia divide-se. Bento da França (1897), Álvaro de Melo Machado
(1913), Francisco de Carvalho e Rego (1950) e Carlos Estorninho (1952), entre
outros, argumentam que a entrada das mulheres chinesas na sociedade de Macau foi
tardia: "Por três séculos /.../ os portugueses não casaram com mulheres
chinesas ". Posição contrária é tomada por Charles Boxer (1942) e pelo Padre
Manuel Teixeira (1965), entre outros, que sustentam a participação da mulher
chinesa na sociedade macaense, desde o início: "Os portugueses casaram
com mulheres chinesas e, assim, (Macau) gradualmente foi povoada.
(D'Avalo: 1638, citado por BOXER: 1942).
Eu defendo a participação tardia da mulher chinesa na sociedade macaense
pelas seguintes razões:
- Os padrões de controlo social, tradicionalmente xenófobos entre os
chineses, desqualificavam socialmente as mulheres chinesas que se relacionassem
com estrangeiros. Esta situação parece ter começado a sentir algum alívio
somente após a proclamação da República na China (1911).
- Era costume antigo em Macau, a
afixação e circulação de “pasquins” contendo crítica social: ao governador,
a pessoas com destaque social e a factos
e eventos que pisassem os limites da “normalidade macaense”. Produzidos no séc. XIX, existem “pasquins”
ridicularizando, em patuá,
casamentos anunciados, de homem
macaense ou reinol com mulher chinesa. Isso não aconteceria se tais casamentos
fossem uma prática habitual;
- Construído em 1860, o Teatro D.
Pedro V é propriedade da Associação dos Proprietários do Teatro D. Pedro V
cujos Estatutos não permitiam a entrada a chineses. Esta discriminação étnica
não aconteceria se fosse comum a mulher chinesa deter o estatuto de cônjuge nas
famílias macaenses;
- os chineses convertidos à religião católica, nascidos em Macau, recebiam
a designação de “tchong cao” (inscrito na religião, novo cristão) mas não o de
“tou san” (filho da terra), embora beneficiassem de um estatuto mais próximo do
dos macaenses.
- O crioulo de Macau (Patuá ou Maquista) é gémeo do crioulo de Malaca
[Kristang] e o seu léxico contém escassa influência do cantonês (BATALHA:
1988). Como língua falada predominantemente na relação familiar - linguagem que
se aprende no berço -, parece que a influência decisiva na construção da
Família Macaense, entre os sécs. XVI e XIX , não terá sido da mulher
portuguesa, nem da mulher cantonense.
Esse papel terá sido desempenhado
principalmente pela mulher euro-asiática não chinesa, (indo-portuguesa, de Malaca e de Timor-Flores, principalmente). À medida em que a influência da mulher
euro-asiática não chinesa se foi distanciando, o Patuá foi perdendo terreno
para o português padrão, acolhendo escasso número de léxico inglês - e de muito cantonense - que o conduziu ao
processo de extinção, a par da entrada
da mulher cantonense na sociedade macaense que alcança o seu auge entre 1945 e
1974, e marca o fim do papel da mulher
asiática não chinesa na sociedade
macaense e a sua substituição pela mulher cantonense.
- A sociedade macaense tradicional, marcada pela mulher asiática não chinesa, tinha uma identidade própria que se empenhava na sua diferenciação activa do sul da China. Sempre resistiu à sua diluição no ambiente chinês, em retribuição, aliás, à atitude relutante dos chineses em relação à intrusão dos portugueses em território da China.
9. A ambivalência Cultural Macaense
A comunidade macaense euro-asiática
de origem chinesa, bem como os precedentes macaenses euro-asiáticos de origem
não-chinesa, atribuíam um peso desigual aos elementos constitutivos da sua
herança cultural ambivalente.
Historicamente, a componente portuguesa era
maximizada e a componente asiática secundarizada.
Para um observador menos atento, certos comportamentos, com maior
visibilidade no relacionamento de netos
luso-chineses com avós maternos chineses, poderiam parecer incompreensíveis.
Não resultando de conflito inter-geracional, a sua origem situava-se em “zona
de diferença étnica”, aprofundada por
eventual incompatibilidade cultural (escarro ou arroto ruidoso, uso dos
pausinhos que vão à boca para retirar comida da travessa, etc.).
A primeira geração de um casamento luso-chinês (homem português com mulher
chinesa é o “casamento regra” entre 1945/74) é detentora de uma herança
biológica mestiça paritária (50% chinesa-han/50% portuguesa-europeia). Mas este equilíbrio genético - que se mantém
pela vida fora - não é observado no desenvolvimento comportamental dos
indivíduos.
Segundo Albert Bandura, psicólogo contemporâneo que elaborou a teoria da
aprendizagem social, uma das mais importantes fontes de influência na
aprendizagem humana é o comportamento dos outros. Diariamente somos expostos a
uma enorme multiplicidade de modelos que, em diferentes contextos, exibem,
desde os comportamentos mais simples, aos mais complexos. A observação desses
comportamentos e das suas consequências será, em grande parte, determinante na
aprendizagem.
Mas a aprendizagem humana é
selectiva. Os indivíduos tendem a imitar as figuras que lhe são significativas.
Em regra, na primeira etapa da vida, o horizonte de observação e
aprendizagem do indivíduo é o seu ambiente familiar, nomeadamente a estrutura
interna da família.
Quer na China, quer em Portugal, a autoridade parental, o papel de liderança da família, é atribuído
ao marido / pai. Daí decorre a assumpção
da herança cultural paterna como património familiar principal, mesmo quando
ele opta pela educação dos seus filhos no exterior ou em escolas
estrangeiras.
Os casamentos inter-étnicos luso-chineses são principalmente entre homens
portugueses e mulheres chinesas.
Em tais casamentos, as referências culturais portuguesas são transmitidas
de uma geração para a seguinte como as principais referências.
10. A educação dos macaenses
Uma das decisões mais importantes nos casamentos luso-chineses diz respeito
à educação das crianças. A educação nas escolas portuguesas era a escolha
óbvia. Tão óbvia quanto a autoridade do
pai dentro da família.
A opção pela educação em português era a centrifugação definitiva que
separava as duas componentes culturais das crianças macaenses, moldando a sua
matriz cultural portuguesa e relegando os elementos da sua herança cultural
chinesa para a periferia dessa matriz básica.
É, portanto, compreensível que os macaenses falem, leiam e escrevam
português, mas, em regra, não podem ler nem escrever chinês, embora falem
cantonense.
A capacidade de ler e escrever uma língua é a chave para o acesso à
respectiva cultura.
No caso dos macaenses, o domínio do português falado e escrito tem sido o factor decisivo da sua ligação à cultura portuguesa. Da mesma forma, a incapacidade de ler e escrever chinês tem sido o factor determinante do seu distanciamento da cultura chinesa, de cujas formas mais eruditas são absolutamente estranhos.
11. Mutação da identidade colectiva macaense: de euro-asiático não chinês a luso-chinês
Historicamente, a identidade colectiva macaense tinha uma componente estrutural
portuguesa que combinava com uma
componente asiática não-chinesa - principalmente da Índia, Sri-Lanka, Bengala,
Malásia, Java-Flores-Timor – entre o século XVI e o século XIX.
Desde meados do séc. XX, tem crescido a componente chinesa. A componente
estrutural portuguesa tem enfraquecido
inevitavelmente.
Este processo de aculturação “culture change”, como usam os antropólogos
anglo-saxões, teve os seguintes desenvolvimentos:
1. A extinção gradual da comunidade macaense, de origem euro-asiática não
chinesa, por via da emigração:
1.1 com início após o final
da Segunda Guerra Mundial (1945)
1.2 durante a Revolução
Cultural na China (1966-76)
1.3 após a Revolução Portuguesa (1974), por se acreditar que o novo poder em Portugal
pretendia entregar Macau à República Popular da China
2. O crescimento de uma comunidade macaense, de origem luso-chinesa
(1945/1974), principalmente), com descendentes de:
2.1 Mulheres chinesas de origem modesta e homens portugueses-europeus de origem semelhante (ex-militares de baixa patente, polícias, etc.)
2.2 Macaenses, de ambos os
sexos, de origem luso-chinesa
2.3 Macaenses, do sexo
feminino, e portugueses europeus de origem modesta
2.4 Mulheres chinesas e homens
macaenses
2.5 Mulheres macaenses e
homens chineses de famílias abastadas
Uma pesquisa nos registos de nascimento, casamento e óbito de Macau e o
tratamento estatístico dos respectivos dados é o caminho para obter as
diferentes componentes étnicas na formação e renovação da comunidade macaense residente.
Os casamentos inter-étnicos - homens portugueses e mulheres chinesas - aumentaram após o final da 2ª Guerra Mundial e a extinção do Comando Territorial Independente de Macau, em 1974, período em que o governo português decidiu manter um contingente militar em Macau com cerca de seis mil homens. Eram, na sua maioria, jovens, solteiros e a idade predominante andava pelos 23 anos.
12. Novíssima geração de
macaenses luso-chineses
Após o fim do numeroso contingente de forças militares portuguesas em Macau
(1974), algo de novo aconteceu, pelo menos em termos de frequência. Como o
número de homens portugueses-europeus com que costumavam casar desapareceu,
aumentou a frequência do casamento de mulheres macaenses com homens
chineses.
Os primeiros filhos desses casamentos atingiram a idade adulta durante os
anos 90 do século XX. O seu pai chinês assumiu a autoridade parental na
família, como é tradição na China e em Portugal. As referências culturais do pai, e não as da
mãe, tornaram-se as suas principais referências.
Uma vez que a decisão sobre a educação dos filhos foi tomada pelo pai, a
sua matriz cultural foi moldada com valores que nada têm a ver com a cultura
portuguesa, mas parece ser guiada por valores assentes no pragmatismo e que dão
maior ênfase à riqueza e aos bens materiais, ao estilo de Hong Kong.
É compreensível que, para estas novas gerações de macaenses luso-chineses,
o português seja uma língua estranha. Falam, lêem e escrevem em chinês (em
caracteres não simplificados, ou seja, caracteres tradicionais) e em inglês.
Nas suas relações com membros da família luso-chinesa que possuem uma matriz
cultural portuguesa (primos do primeiro
grau, p. exemplo), o cantonês é a língua de comunicação.
Esta nova geração de macaenses luso-chineses foi a primeira a desligar-se da cultura portuguesa.
13. Personalidade básica dos
macaenses
A personalidade psico-social dos macaenses é complexa e contém antinomias
que podem ser explicadas pela fusão das diferentes tendências inerentes às suas
próprias componentes étnicas.
Apertada entre o mar e a imensa sombra da China, fruindo incomparavel
liberdade e prosperidade do que a sociedade feudal chinesa que durou até o
século XX, a sociedade macaense produziu um estereótipo criticamente negativo
da China que foi transmitido de cada geração para a seguinte e se tornou parte
integrante da sua personalidade básica, mesmo quando existe ascendência
chinesa.
Os macaenses são, simultâneamente, sonhadores e pessoas de
acção. Não sendo propensos a reflexões frias, são realistas, emocionais e
imaginativos. Não se preocupam demais com o conforto mas, paradoxalmente, são
atraídos para demonstrações de riqueza e luxo. São religiosos, mas não
místicos. Têm uma excelente capacidade
de se adaptar às mais diversas situações, ideias, pessoas e coisas, sem
qualquer perda de carácter. O seu comportamento é um tanto inibido porque se
preocupam com o que os outros pensam deles. Embora não sejam pessoas de grande
humor, são irónicas e têm uma mente crítica extremamente aguda. São dotados de
grande inteligência.
Os macaenses são também moderados, a ponto de serem excessivamente modestos
na expressão do seu valor individual e colectivo. Deliberadamente apagam-se, no
épico em que são protagonistas permanentes, dando aos outros o crédito que eles
próprios merecem. Evoco Carlos Assumpção na época complicada do 1,2,3. As
virtudes e as falhas dos macaenses foram mantidas ao longo dos séculos. As suas
reacções variam apenas com o contexto histórico. Quando têm de desempenhar um
papel relevante, a sua actuação supera
as expectativas. Quando confinados a um papel menor, arrefecem o coração e
vegetam, se for preciso.
A figura de Vicente Nicolau de Mesquita é épica e tutelar. A par de muitos
macaenses valorosos cuja memória foi extinta pela modéstia e que desempenharam
um papel honroso e, muitas vezes, heróico: na defesa da sua terra contra os
invasores holandeses; juntando-se aos contingentes militares que resgataram os
exércitos Ming, apesar das ameaças de morte dos manchus; nas lorchas de
combate contra os piratas; ou
incorporados nas Forças Armadas Portuguesas, durante as guerras que precederam
a independência dos Países de Língua Portuguesa.
Não há notícia de macaenses nas fileiras dos “movimentos de libertação” das
antigas colónias portuguesas. Ao
contrário, há registo de luso-indianos incorporados nas forças de
ocupação/libertação de Goa, Damão e Diu, em 19 de Dezembro de 1961.
O caráter dos macaenses foi uma constante fonte de dificuldades para os
governadores de Macau, especialmente em tempos de maior estagnação, que
favoreceram a apatia e fortaleceram a mente crítica dos macaenses. Isto foi
profusamente ilustrado pelos tradicionais “pasquins” escritos em crioulo
macaense, dos quais José dos Santos Ferreira foi o último cultor. Miguel Senna
Fernandes e outros macaenses estão a tentar salvá-lo de uma morte anunciada. Da
mesma forma que os seus conterrâneos, do
início do século XIX, Antonino
Haggesborg e José Maria de Oliveira Lima.
A crítica social e política macaense é uma parte importante da história da
imprensa portuguesa em Macau. Mas devido à intensidade dos interesses em
conflito e à pequenez de Macau,
geralmente tomou a forma defensiva de “cartas de leitores identificados”, artigos escritos sob pseudónimo, ou mero
anonimato protegido pela respectiva direcção.
Mas os macaenses nem sempre são tão cautelosos. A história registou
atitudes abertamente desafiadoras em tempos de estagnação, mais notavelmente o
de Carlos Augusto Montalto de Jesus na segunda edição de “Historic Macau” (1926) ou, mais recentemente, em
cartas endereçadas às autoridades políticas e judiciais de Macau, sob a autoria
do macaense Jorge Alberto Basto da Silva, denunciando práticas de alegada
corrupção de altos funcionários do Governo da RAEM que têm circulado
abundantemente na cidade.
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