Saturday 23 October 2021

Portugal: num beco sem saída?

Legislativas de 2015

Jorge Morbey*

1.       No Ponto Final, de 18 de Fevereiro de 2005, sob o título  Legislativas 2005: quo vadis Portugal?  

 O afastamento dos portugueses de Macau da vida político-partidária em Portugal foi momentâneamente interrompido. Primeiro, pela visita a Macau do candidato de um dos partidos. Depois, pelas entrevistas telefónicas radiodifundidas aos candidatos dos outros partidos. Convenhamos que o sossego dos portugueses residentes em Macau não foi perturbado.

 As eleições são um acto de designação à pluralidade de votos. Ao acto de escolher mediante voto chama-se sufrágio, designação que se aplica também ao correspondente poder ou direito. A liberdade de escolha dos eleitores, porém, está limitada às candidaturas que se apresentam a sufrágio. Tratando-se de eleições legislativas, nos sistemas democráticos, cada eleitor escolhe - ou deveria escolher - o programa político do partido que, em seu entender, contém as melhores propostas. E dar-lhe o seu voto. 

 Outra componente da política partidária é a ideologia. Esta é uma simplificação da arte, da ciência e da filosofia políticas. Funciona como arma e justificação do poder e credo daquilo em que importa crer, mesmo que os resultados o desmintam. A ideologia procura naturalmente ocultar os próprios defeitos e exaltar as próprias virtudes. Nascida na Revolução Francesa, a ideologia foi como que um novo credo ou religião laica, para substituir os três justificativos tradicionais da acção do poder: a teologia, a filosofia e a história. 

 A crise das ideologias no mundo do nosso tempo repôs na agenda o realismo político e vai devolvendo à política o significado de fazer e – sobretudo - agir: dispondo os meios em relação aos fins e pensando os fins em relação aos meios.

 Sendo os recursos económicos limitados, a política económica assume importância decisiva. Independentemente de outros intervenientes na vida económica, é na actuação dos poderes públicos ou, mais propriamente, das autoridades centrais que se depositam as esperanças numa crescente felicidade colectiva. Mas, quer na regulação da actividade económica a curto prazo – as políticas de conjuntura – quer quanto aos dados estáveis da estrutura da economia, em Portugal não temos de que nos regozijar. 

 No período que decorreu entre 1928 e 1974, o objectivo de estabilidade interna,  para além da estabilidade monetária, era identificado pela estabilidade económica que implicava a consecução de um grau tão elevado quanto possível de emprego e de actividade produtiva, com salários e preços baixos. Sem meios para a alcançar internamente, a estabilidade económica - que permitia os níveis modestíssimos de vida da generalidade dos portugueses nesse tempo - foi sendo conseguida com as medidas de protecção à indústria nacional, a exportação para os mercados coloniais, o recurso à emigração e a atracção do turismo de estrangeiros.

 A euforia da liberdade a seguir ao 25 de Abril, o poder reivindicativo das organizações sindicais, as nacionalizações, a reforma agrária, a exorcização de capitalistas e latifundiários, o aumento da despesa pública com o desmesurado crescimento da burocracia estatal, tiveram o efeito efémero de melhorar o nível de vida dos portugueses. Mas, a médio e longo prazo, feriram gravemente o tecido empresarial. Por outro lado, as ocupações e o baixo valor das rendas fizeram desaparecer as habitações para arrendar e passou a ser forçosa a aquisição de habitação própria, normalmente em zonas periféricas, distantes dos locais de trabalho e mal servidas de transportes públicos. À habitação própria juntou-se a necessidade de aquisição de automóvel. E o progressivo endividamento das famílias disparou com a erosão continuada do poder de compra dos portugueses.

 Com a entrada do país na CEE – hoje União Europeia – e os celebrados fundos estruturais, em boa parte dissipados como haviam sido as especiarias do Oriente e o ouro do Brasil, subestimou-se a perda ainda que parcial da Soberania enquanto Poder que não tem igual na ordem interna nem superior na ordem externa. Ficámos livres das ingerências do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, mas perdemos para Bruxelas o controlo da política monetária. Esconjurou-se o perigo de tentações totalitárias, fardadas ou de partido único, em troca da apólice europeia que segura a nossa Democracia.

 As quatro principais variáveis da política macroeconómica – nível de emprego, nível dos preços, balança de pagamentos e ritmo de aumento do produto nacional –  apresentam taxas nada excitantes. Antes pelo contrário. Aumentam o desemprego, os preços, o déficit da balança de pagamentos e estagna ou é negativo o crescimento do produto nacional.

 Encerram empresas em número considerável, em muitos casos por falência fraudulenta, transferindo-se capitais e equipamentos para outros países que oferecem mão de obra mais barata para reduzir os custos de produção e, em consequência, tornar mais competitivo o preço do produto final e, certamente também, aumentar as margens de lucro. É cada vez mais evidente que a mão- de-obra em Portugal é demasiado cara para viabilizar o investimento reprodutivo de capitais e a criação ou a simples manutenção de emprego. Mesmo assim, desgraçadamente, a média dos rendimentos de trabalho dos portugueses é  70% da dos espanhóis e 50% da dos alemães. A reconversão da indústria é travada pela elevada taxa de iliteracia.

 A classe política, ainda que desacreditada, vive bem em geral. Não declina mordomias e é compensador o seu modo de vida. Não tanto pelo que se aufere na política activa, mas pelo que se ganha por causa dela. Ser político tem os seus incómodos. Melhor é ter sido. Para entrar na largueza das empresas públicas e no remanso dos conselhos de administração. Com direito a reformas chorudas.  

 Não temos as ferramentas necessárias para reparar as mazelas da nossa economia. Nem quem queira e seja capaz de o fazer no quadro da política partidária. Não há choques que a reanimem. Fiscais, tecnológicos ou de gestão.  Tudo são tretas de políticos, de incompetência comprovada, para entreterem o pagode, pagando o preço da sua própria erosão acelerada que vai encurtando a esperança média de vida dos governos que já nem quatro anos duram.

 A doença grave de que padece o País não é diagnosticável apenas pelos sintomas dos últimos três meses ou três anos. Vem de trás. Praticamente todos os partidos que se apresentam a sufrágio já deram provas de que, cada um por si, não consegue reunir equipa competente para retirar o País da situação gravíssima em que se encontra. Nem mesmo com coligações, à direita ou à esquerda. O caminho, por alguns anos, não é, portanto, o das maiorias - absoluta ou relativa – como é normal em Democracia.

 Do que se precisa é de um Governo de Salvação Nacional, formado pelos mais competentes de cada partido com assento parlamentar para cada área da governação, incluindo independentes. Designados na proporção dos votos que cada partido receber e com base num pacto de regime para uma legislatura,  firmado por todos,  renovável para legislaturas seguintes, porque a gravidade da situação pode melhorar mas não se resolve em quatro anos.

 Nestas eleições legislativas de 2005, o eleitorado tem nas suas mãos a oportunidade de manifestar o seu direito à indignação pelo estado a que chegou o País. Votar é um dever cívico. Que também se cumpre com o voto nulo ou em branco. Estes – e a abstenção - serão o sinal de alarme que pode forçar os partidos, à esquerda e à direita, a entenderem-se e a entenderem que o interesse nacional está acima da estultícia de chegar ao Poder para tudo ficar na mesma ou pior. 

Ou será que queremos continuar a interrogarmo-nos – até quando? - quo vadis Portugal?

 

 2.       No Ponto Final de 10 de Junho de 2011, sob o título Portugal ao Espelho: Legislativas de 2011

 Ao fim de seis anos de governo, o legado que José Socrates e o PS deixam a Portugal é inventariado no último livro do economista e professor universitário Álvaro Santos Pereira:

O pior crescimento económico dos últimos 90 anos, na última década;

A maior dívida pública dos últimos 160 anos, em % do PIB: que não inclui as dívidas das empresas públicas (25% do PIB); nem os encargos, no valor de 60 mil milhões de euros  (35% do PIB), com as Parcerias Público-Privadas, na construção de auto-estradas, hospitais, escolas, etc., cujo pagamento será efecuado por futuras gerações e governos vindouros;

A pior taxa de desemprego dos últimos 90 anos, que continua a aumentar após ter chegado aos 11.1% no ano corrente: com 620 mil desempregados, em que se incluem 300 mil no desemprego, há mais de 12 meses;

A maior dívida externa dos últimos 120 anos: a dívida externa bruta de Portugal era inferior a 40% do PIB, em 1995. Em 2011, ronda os 230% do PIB; a dívida externa bruta aproxima-se de um valor que é quase 8 vezes o valor das exportações portuguesas; Portugal figura entre os 10 países mais endividados do mundo em praticamente todos os indicadores possíveis; a dívida externa líquida, em 1995, equivalia a 10% do PIB. Em 2011, aproxima-se dos 110% do PIB;

O endividamento das famílias é de cerca de 100% do PIB e 135% do rendimento disponível;

A dívida das empresas é equivalente a 150% do PIB;

Cerca de 50% de todo o endividamento nacional é imputável, directa ou indirectamente, ao Estado;

Portugal passa pela segunda vaga de emigração dos últimos 160 anos; e sofre a segunda maior fuga de cérebros entre os países da OCDE;

O país tem a pior taxa de poupança dos últimos 50 anos;

Nos últimos 10 anos, os défices da balança corrente oscilaram entre os 8% e os 10% do PIB;

Na Justiça, em 1995, havia 630 mil  casos pendentes nos tribunais cíveis; em 2011, esse número subiu para 1.6 milhões. No entanto, na Europa, Portugal é um dos países que mais gasta com os tribunais por habitante;

Na Educação, Portugal tem a terceira pior taxa de abandono escolar entre todos os países da OCDE, melhor do que o México e a Turquia, apenas;

O peso da despesa do Estado já ultrapassa os 50% do PIB. Existem: 349 Institutos Públicos, 87 Direcções Regionais, 68 Direcções-Gerais, 25 Estruturas de Missões, 100 Estruturas Atípicas, 10 Entidades Administrativas  Independentes, 2 Forças de Segurança,  8 Entidades e sub-entidades das Forças Armadas, 3 Entidades empresariais regionais, 6 Gabinetes, 1 Gabinete do Primeiro Ministro, 16 Gabinetes de Ministros, 38 Gabinetes de Secretários de Estado, 15 Gabinetes dos Secretários Regionais, 2 Gabinetes de Presidente de Governo Regional, 2 Gabinetes da Vice-Presidência dos Governos Regionais, 18 Governos Civis, 2 Áreas Metropolitanas, 9 Inspecções Regionais, 16 Inspecções-Gerais, 31 Órgãos Consultivos, 350 Órgãos Independentes (tribunais e afins),   17 Secretarias-Gerais, 17 Serviços de Apoio, 2 Gabinetes dos Representantes da República nas regiões autónomas, 308 Câmaras Municipais, 4260 Juntas de Freguesia, Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional,          Comunidades Inter-Municipais.

É obra!!!

 Em vez de travar e reduzir drasticamente o peso do Estado para reduzir o défice das contas do Estado, o Governo PS/José Socrates, que Portugal teve nos últimos seis anos, optou por cortar salários e pensões, e aumentar impostos, nos orçamentos de Estado mais recentes e nos sucessivos PEC’s que complementaram aqueles.

O resultado está à vista: O PS/José Socrates obteve 28.05% dos votos expressos, contra os seus opositores principais – PSD com 38.63% e CDS/PP com 11.74%.

Portugal, que futuro?

Na leitura dos resultados das Legislativas de 2011, assume importância capital o valor da abstenção (41.1%)  e de votos brancos  (2.67%). A abstenção, aliás, tem vindo a crescer permanentemente: 35.7% (2005); 40.3% (2009).

Já nas eleições presidenciais de 23 de Janeiro de 2011, a maioria do eleitorado não foi às urnas (53.6%). Os eleitores  que votaram em branco, isto é, que optaram também por não escolher nenhum dos candidatos, foi de 4.26%.

Temos, portanto, que 43.8% dos eleitores dos deputados à Assembleia da República e 57.9% dos eleitores do Presidente da República, quiseram ficar de fora do processo de escolha dos dois órgãos de topo do sistema político português.

Estamos face a dois records de não participação dos portugueses na vida política do seu país registados em 2011. 

Não pondo em causa a legitimidade formal para o exercício do Poder pelo Presidente da República e pela Assembleia da República, eleitos em 23 de Janeiro e 5 de Junho de 2011, parece oportuno questionarmo-nos sobre se se deverá prosseguir com um sistema político, assente num sistema eleitoral, que corre o risco de ser cada vez menos representativo da vontade colectiva dos portugueses.

É verdade que só não vota quem não quer. Mas este alheamento dos portugueses, no que se refere à escolha das cúpulas do seu sistema político, não augura nada de bom. Será apenas desinteresse irresponsável? Não acredito. É também uma forma de protesto e uma manifestação visível de descrédito relativamente às instituições políticas que não têm estado à altura das legítimas expectativas de vida de um número assustadoramente crescente de portugueses, e que encontra explicação nos dados inventariados pelo Prof. Álvaro Santos Pereira.   

Mudar o Povo ou alterar o sistema

Escrevia o Prof. Jorge Dias em 1950 que a única constante de um povo é o seu fundo temperamental e que o Português não gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas, ferido no seu orgulho, pode ser violento e cruel.

O voto em branco e a abstenção têm consequências diferentes na aritmética eleitoral. Ambos podem ter por motivação: a não identificação com nenhum dos partidos políticos ou candidatos presidenciais; um modo de protestar contra a classe política; uma intenção de retirar legitimidade ao sistema político. Se os respectivos valores percentuais se apresentam baixos, podem ter a leitura do inconsequente "agarrem-me, se não eu...".

Onde se situa a fronteira a partir da qual os não votantes e os que votaram em branco adquirem peso político bastante para que a sua opção seja tomada em conta? Essa fronteira não existe. Alguns sistemas eleitorais estabelecem a obrigatoriedade do voto, prevendo penalidades para os eleitores que não votarem, o que também perverte a representatividade da vontade colectiva. Mas a regra é a de conferir valor aritmético somente aos votos expressos, o que também não garante essa representatividade. De modo que, ou o poder político tem a inteligência suficiente para perceber a necessidade de alterar o sistema, procurando torná-lo, o mais possível, genuinamente representativo; ou arrisca-se à ruptura do sistema, por via revolucionária ou por golpe de Estado.  Em Portugal, a I República foi fértil em rupturas desta natureza em que acabou por sucumbir.

Nos últimos seis anos, Portugal resvalou em plano inclinado para um clima de crescente tensão social que pode inviabilizar a governabilidade do país. A esquerda parlamentar apresenta-se minoritária. Mas a esquerda social tem condições para mobilizar e liderar o descontentamento de todos os sectores da população unidos pelo desemprego, pela fome, pela redução de salários e pensões, pelo corte de benefícios sociais e crescentes dificuldades no acesso aos cuidados de saúde, pelo endividamento das famílias que põe em risco a sua própria habitação, pela crescente desigualdade social que circula com nomes, fotografias e escandalosos rendimentos auferidos pelos príncipes do sistema, pela dor da emigração de entes queridos, pelo aumento da insegurança e da violência, etc.

A internet, as redes sociais, as sms, têm-se revelado meios céleres de mobilização, protesto e derrube dos sistemas políticos que se divorciaram da vontade colectiva. Estar-se-à a tempo de evitar o pior?

Dizia também o Prof. Jorge Dias: [o Português] é um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento.

D. Sebastião e Salazar

Segundo o mesmo ilustre antropólogo, a saudade é um estranho sentimento de ansiedade que parece resultar da combinação de três tipos mentais distintos: o lírico sonhador – mais aparentado com o temperamento céltico -, o fáustico de tipo germânico e o fatalístico de tipo oriental. Este último tipo mental invade os portugueses nas épocas de abatimento e de desgraça. Então a saudade toma uma forma especial, em que o espírito se alimenta morbidamente das glórias passadas e cai no fatalismo de tipo oriental, que tem como expressão o fado, cujo nome provém do étimo latino fatu (destino, fadário, fatalidade).

Em 2007, num programa da Radiotelevisão Portuguesa intitulado “Os Grandes Portugueses”, Salazar foi eleito “o maior português de sempre”contra tudo o que seria de esperar de uma vontade colectiva identificada com o sistema político português instituído na vigência da Constituição de 1976.

O referido programa de televisão, um modelo original da BBC, havia sido  realizado em outros países. Em França foi eleito Charles De Gaulle, em Inglaterra Winston Churchill e nos Estados Unidos Ronald Reagan. Resultado nada discrepante com a identificação desses povos com o seu sistema político.

O Sebastianismo tem as suas raízes na perda da independência nacional de Portugal, em 1580, e na dominação dos portugueses por um poder estrangeiro, até 1640. Oliveira Martins, em 1879, explicava que o povo português, abandonado e perdido, fizera do lendário D. Sebastião um génio e da sua história um mito. Sampaio Bruno, em 1904, abordou as pistas para o desvendamento do mito. José Lúcio de Azevedo, em 1918, traçou a sua origem e evolução. António Sérgio, em 1920, classificou-o como um fenómeno social e intelectual produzido em condições que se resumem numa consciência de “queda”, acompanhada da falta de verdadeira independência. Acrescenta que, com a persistência de tais condições, o mito segue paralelamente a tradição do bandarrismo. E concluía: “o messianismo terá vida (ou poderá tê-la) enquanto se impuser a este povo, para comparar e contrapor à sua efémera grandeza, o espectáculo persistente da sua lúgubre decadência”.

O mito sebastianista vicejou em poetas como António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e outros. A sua permanência na História de Portugal, com metamorfoses e ressurgências em determinadas épocas, deu azo a que o  historiador já referido, José Lúcio de Azevedo, tivesse concluído que o sebastianismo “nascido da dor, nutrindo-se da esperança, é na história o que é na poesia a saudade, uma feição inseparável da alma portuguesa”.

Pode estar a germinar em Portugal novamente um messianismo, metamorfoseado agora em Salazar: homem honesto, professor universitário prestigiado, político incorrupto, guardião indomável da independência nacional durante os quarenta anos de exercício do poder, que nasceu e morreu pobre; em contraposição à imagem da liderança política mais recente de Portugal que Urbano Tavares Rodrigues, meses atrás, sintetizava do seguinte modo: "Como explicar que o povo que foi sujeito da Revolução de Abril tenha hoje como Primeiro-ministro, transcorridos 35 anos, uma criatura como José Sócrates? Como podem os portugueses suportar passivamente há mais de cinco anos a humilhação de uma política autocrática, semeada de escândalos, que ofende a razão e arruína e ridiculariza o País perante o Mundo?"

Portugal ao espelho

Convenhamos que José Sócrates foi o elo mais recente de uma cadeia de lideranças políticas em que se acumularam erros graves.

Portugal sentiu as maiores dificuldades em se voltar a situar no mundo. Ao projecto nacional de construção de uma Nacão pluricontinental e multirracial, nenhum outro projecto nacional mobilizador se seguiu.

A entrada de Portugal na CEE/UE deu-se, não como gente trabalhadora que  embarcava para trabalhar como tripulação de um dos navios de uma frota,  mas como turistas que entravam a bordo de um paquete de cruzeiros, sem dinheiro para as despesas da viagem.

Terá Portugal vocação europeia? Desde Aljubarrota (1385) e Ceuta (1415), Portugal virou costas à Europa, até ao 25 de Abril (1974). Ao fim de seis séculos de História, era previsível que não fosse fácil a reconversão da identidade colectiva e da personalidade base dos portugueses.

A fragilidade da economia portuguesa, enraízada na Política Ruralista do Estado Novo de auto-suficiência alimentar (1926 – 1950) e na Lei do Condicionamento Industrial (1931), altamente proteccionista da produção nacional, serviu para eliminar a concorrência interna das empresas já existentes em cada ramo mas, ao mesmo tempo, contribuiu para a estagnação tecnológica, a criação de monopólios, a fraca qualidade dos bens e serviços produzidos, isto é, resultou na construção de um tecido empresarial português muito frágil.

O mercado das colónias, com escritórios instalados em Portugal que decidiam sobre as suas importações e exportações – sobrefacturando aquelas e subfacturando estas cujos diferenciais retinham em Portugal - era altamente compensador para a economia portuguesa.

Ainda assim, o equilíbrio das contas públicas conseguia-se com as remessas dos emigrantes. Portugal era um país rico – que se dava ao luxo de manter uma guerra em três frentes – povoado de gente pobre.

A descolonização retirou à economia portuguesa o controlo dos mercados coloniais.  Apesar do profundo golpe que sofreu, a economia portuguesa conseguiu manter por alguns anos o equilíbrio das contas públicas. Os 48 anos de Estado Novo, no meio de tudo o que de mau deixou ao País, legou-lhe uma pesada herança, em ouro e divisas.

O Prof. Mário Murteira, Vice-Primeiro Ministro do Governo da Eng.ª Maria de Lurdes Pintassilgo, afirmava publicamente que o que faltava em Portugal não era dinheiro. Do que havia falta – dizia - era de ideias e projectos. Mas o empresariado português passou a fazer negócios com o dinheiro dos bancos. Os capitais sociais, os capitais próprios, eram mais ou menos ficção. Começou o endividamento das empresas.

O endividamento das famílias teve início em consequência da política populista  das ocupações de bens imóveis que se seguiu ao 25 de Abril. O desfavorecimento dos proprietários, incluindo os senhorios de imóveis para habitação e a contenção do valor das rendas de casa levou à rápida deteriorização do parque habitacional e à extinção do mercado de arrendamento para habitação. Desapareceram os escritos nas janelas que indicavam casa para arrendar. Quem necessitava de casa não encontrava oferta de habitações  para arrendar.

A solução passou a ser  a compra de apartamentos em urbanizações na periferia das cidades, com recurso ao financiamento bancário garantido por hipoteca. 

A inexistência de redes de transportes colectivos entre a habitação e o local de trabalho, com passagem pelas amas, creches, jardins de infância ou escolas, resolveu-se com a compra de viatura própria, com recurso a crédito titulado por letras. Assim começaram as famílias a viver acima das suas possibilidades. O hábito entranhou-se na sociedade portuguesa e cresceu como bola de neve.

A nível político, os governos do Estado Novo  eram alcunhados de “governos de catedráticos” .  Na verdade, os ministros, secretários e subsecretários de Estado, originários de famílias humildes, na sua maior parte, eram professores universitários, oficiais das forças armadas, gente que tinha uma carreira profissional prestigiada, a que regressava  quando saía do governo.

A Democracia portuguesa passou a previlegiar, como é natural, a filiação partidária. Os filiados dos partidos foram perdendo qualidade. Gradualmente foram aumentando ministros e secretários de Estado recém formados nas Jotas partidárias, com habilitações adquiridas já no exercício de funções políticas, sem exercício profissional prévio e credenciado. Com excepções, é certo. Mas cada vez em menor número.

A fragilidade da Economia, encostada ou mesmo dependente da Política e dos partidos, trouxe para a arena política a maior promiscuidade de que há memória entre a Política e a Economia. Daí o espectáculo degradante e típico das “repúblicas das bananas”, do favorecimento recíproco. A Política passou a ser o trampolim para a entrada no mundo dos negócios e das negociatas. Passou a ser regra nos chamados partidos com vocação para governar. O casamento da política com os negócios e as negociatas pariu um polvo, agora em idade adulta, cujos tentáculos têm a cor dos partidos que têm governado Portugal em Democracia.

Saneamento nacional

Portugal parece precisar urgentemente de um verdadeiro saneamento nacional. Não só nas Finanças e na Economia, como agora lhe é imposto de fora. Mas na Política, principalmente. É imperativa a reconciliação dos portugueses com o seu sistema político, de que o sistema eleitoral é parte integrante. É inadiável que os portugueses voltem a ter confiança em quem governa. Na Política, na Administração e nas empresas. Não se restaura a sua confiança a pedir-lhe sacrifícios enquanto persistir o fosso das remunerações e das pensões que os separa de políticos e gestores públicos.

Faço eco ao grito de revolta de Clara Ferreira Alves, com excertos do artigo que publicou  no Expresso, em Março de 2009:  

É muito triste, mas fomos nós, a nossa inépcia e indiferença que permitiu que estes senhores tornassem Portugal o país mais atrasado da Europa. Não admira que num país assim emerjam cavalgaduras, que chegam ao topo, dizendo  ter formação, que nunca adquiriram, que usem dinheiros públicos (fortunas escandalosas) para  se promoverem pessoalmente face a um público acrítico, burro e embrutecido. Portugal tem um défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito maior do que o  seu défice financeiro, e nenhum português se preocupa com isso, apesar de pagar os  custos da morosidade, do secretismo, do encobrimento, do compadrio e da corrupção. Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de protecções e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e reputações, de dinheiros e negociações que impede a escavação da verdade.

A “escavação da verdade”, a cargo do Poder Judicial realmente independente e imune a pressões políticas, é condição essencial para restituir confiança dos portugueses nas suas instituições. Em 1975, após a queda do Estado Novo, vigorou legislação de saneamento que resultou na declaração de incapacidade cívica, activa e passiva, dos indivíduos ligados ao antigo regime.

Se os partidos com assento parlamentar tiverem a coragem de firmar um Pacto  de Transparência visando o apuramento da responsabilidade civil e criminal dos políticos e gestores públicos comprometidos com o empurrão que levou Portugal a resvalar para o fundo do abismo em que se encontra, terão o prémio de passarem a ser depositários da confiança dos portugueses, principalmente porque alguns deles terão de se purificar pelo hara-kiri de correlegionários.

Por outro lado, se os mesmos partidos firmarem um pacto de equidade que reduza o leque de retribuições diminuindo o fosso que separa todos os portugueses de alguns portugueses, reforçarão as possibilidades de impôr sacrifícios a todos, após ser público e notório o sacrifício desses alguns.

É este o caminho por que se salvará a Democracia em Portugal e se abrirão as portas para a felicidade colectiva dos portugueses.  

 3.       E agora, em 2015?

 Ao aproximarem-se as eleições legislativas de 2015, pouco há a acrescentar, além do cansaço causado pela incompetência dos sucessivos governos e correspondentes oposições formadas alternadamente pelo PS, PSD e CDS/PP.

Neste último troço (2011/2015) da “nossa”  democracia quarentona:

·         O número de pobres subiu de dois para três milhões;

·         O número de desempregados passou de setecentos  mil para um milhão e quatrocentos mil;  

·         Nos dois últimos anos, surgiram 28% dos milionários que existem em Portugal;

·         10% dos mais ricos detêm 60% da riqueza;

·         Portugal contou com mais 10.700 milionários do que no ano anterior;

·         Seis milionários portugueses detêm um património líquido situado entre os quinhentos milhões e os mil milhões de dólares americanos de património líquido;

·         Três milionários portugueses têm mais de mil milhões de dólares no seu património líquido.

Após este balanço de Portugal, haverá ainda quem queira votar no PS, no PSD ou no CDS, além dos que se têm banqueteado à mesa do orçamento? É preciso que o eleitorado os castigue e desresponsabilize pela irresponsabilidade exibida durante quatro décadas. Ao mesmo tempo, arrumados os velhos partidos num canto da nossa História, cada eleitor  deve depositar o seu voto, nas próximas eleições legislativas, de modo consciente,  generoso e confiante nas novas opções políticas  que se apresentarem a sufrágio. Com o mesmo entusiasmo com que os portugueses votaram para a Assembleia Constituinte, no dia 25 de Abril de 1975. Mas com o redobrado conhecimento daqueles em quem não se deve votar, para libertar Portugal da ocupação das forças neo-liberais e para a reconstrução do Estado Social.

 *Ex-Presidente do Instituto Cultural de Macau e professor convidado na Universidade de Ciência     e Tecnologia de Macau 

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