A Judicialização da Política
e a Politização da Justiça
Jorge Morbey
No mais profundo das minhas entranhas cerebrais
era - e é! - líquido e transparente,
como a água cristalina, que a trave mestra
do “segundo sistema”, legado de
Deng Xiao Ping que nunca me canso de venerar,
é o Estado de Direito.
A vida e, particularmente, os muitos amigos juristas que tenho e admiro,
têm-me ensinado que, onde há dois
juristas, pode haver três opiniões. Pelo
menos.
O acórdão do Tribunal de Segunda Instância não
pôs termo àquilo que, lamentavelmente, a ineptocracia reinante em Macau empolou
desnecessaria e imprudentemente e ecoa pela cidade com a designação de “caso Sulu
Sou”, sem que o jovem deputado em nada tivesse querido contribuir para o estado
a que as coisas chegaram.
Numa clarificação conceptual preliminar, ineptocracia
é um neologismo para “governo/instituição regido por pessoas que são incapazes
para a função”. Podem ser óptimos
pintores, músicos, bailarinos ou empresários.
Mas são um azar a que, nem as democracias mais representativas, conseguem escapar (v.g. Estados Unidos da América, Reino Unido,
Brasil, etc.).
A segunda clarificação tem a ver com o julgamento
de Sulu Sou (e de Scott Chiang) do crime de que estão acusados, de “desobediência
qualificada”. A sentença pode ser-lhe
favorável e viabilizar a retoma do mandato de deputado de que se encontra
suspenso, por iniciativa da ineptocracia e para desgosto desta. Mas, pode ser condenado, de modo a perder o mandato de
deputado e a ineptocracia rejublilará.
Todavia, o sentido, favorável ou desfavorável, da
sentença não produzirá quaisquer efeitos que desbloqueiem o sistema judiciário da RAEM que,
em minha opinião, ficou bloqueado pelo acórdão do Tribunal de Segunda Instância,
de 1 de Fevereiro de 2018, com fundamento em incompetência daquele Tribunal (e
de todo o Sistema Judiciário da RAEM!!!), “visto que no actual panorama
jurídico-normativo inexiste competência jurisdicional legalmente reconhecida
aos tribunais [da] RAEM para o conhecimento do presente recurso.”
É inadmissível que a RAEM que “goza de poder
judicial independente, incluindo o de julgamento em última instância”; cujos
tribunais “têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região
excepto “sobre actos do Estado, tais como os relativos à defesa nacional e às
relações externas (Artigo 19.° da LB); são os órgãos judiciais aos quais compete na RAEM exercer o poder judicial (Artigo 82° da LB); e exercem independentemente a função judicial,
sendo livres de qualquer interferência e estando apenas sujeitos à lei (Artigo
83.° da LB), um
Tribunal Superior se declare incompetente, bloqueie e ponha em causa o próprio
funcionamento do Sistema Judiciário da RAEM e do Estado de Direito!
É inadmissível também que tudo isso tenha sido
produzido por um Tribunal Superior, sendo certo que no Estado de Direito, e da
separação de poderes, são exactamente os
Tribunais Superiores os órgãos judiciais que estão na linha da frente na
conformação do Sistema Legal com as normas constitucionais, sua interpretação e
produção de jurisprudência, nomeadamente para preenchimento de lacunas que o
robusteçam e não que o alienem ou paralisem!
É inadmissível que se cubram, sob o manto pesado
e opaco de “actos praticados no exercício
da função política”, (Artigo 19.° - n.° 1 da LBOJ,) ilegalidades,
ainda que de natureza processual, praticadas pela ineptogracia de legisladores,
que não sabem acatar a lei, nem interpretá-la e, muito menos, produzi-la.
Passando em revista a doutrina produzida na
generalidade dos sistemas políticos estruturados em Estado de Direito e
assentes no princípio da separação de poderes, pode concluir-se que a regra é a de não
intromissão do Poder Judicial nos actos políticos do Legislativo e do
Executivo. Mas, é óbvio que esta regra assenta no pressuposto da legalidade do
acto político.
Não é suficiente a alegação de que se trata de acto
político, do Legislativo ou do Executivo, para tolher o controle judicial, em
consequência da regra que veda ao Poder
Judicial apreciar o acto político.
Em regra, o Judicial não pode controlar tais actos
em razão do princípio da separação dos poderes. Esta regra, porém, não é uma regra absoluta. O
controle judicial dos actos políticos é possível e desejável no Estado de
Direito e, portanto, em Macau, se esses
actos políticos ofenderem direitos individuais ou colectivos, ou contiverem
vícios de legalidade ou constitucionalidade.
Congratulo-me com a decisão anunciada, do jovem
Deputado e do seu Advogado, de recorrer
para o Tribunal de Última Instância (TUI). Não só para que, finalmente, lhe
seja feita Justiça, como também para desbloquear o funcionamento do Sistema
Judiciário da RAEM que o referido acórdão do Tribunal de Segunda Instância
paralisou e menorizou.
No Estado de Direito, trave mestra do segundo sistema, não há uma categoria de actos
políticos, como entidade ontológica autónoma na escala dos actos do Estado, nem
há órgãos ou Poderes que os pratiquem com privatividade.
Jornal Hoje Macau, 14.Fev.2018
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