Tuesday, 22 June 2021


Nos 25 anos do livro “Macau 1999 – O Desafio da Transição”

Entrevista ao Jornal Hoje Macau


Escreveu aquele que pretendia ser o guia prático para a Transição de Soberania de Macau. Dezasseis anos depois do processo, o autor avalia os pontos positivos e faz novas previsões. É preciso alargar o território, caso contrário a sociedade não irá aguentar. 

Passam 25 anos desde que lançou o livro “Macau 1999 – O Desafio da Transição” e 16 desde a transferência de soberania de Macau para a China. Ao olhar para trás como avalia este percurso?

No geral é um balanço positivo. Muita coisa mudou, algumas coisas boas, outras nem tanto, mas um saldo positivo. 

Aspectos negativos?

Há coisas menos boas. Por exemplo, os cheques pecuniários. Macau, devido ao desenvolvimento no sector do Jogo e pelo monopólio da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM), viu-lhe induzida uma certa carestia de vida. E a resposta que o Governo encontrou foi o cheque. Mas isto parece-me que é um bocado de preguiça de quem toma decisões. Seria muito mais eficaz se se estudasse um sistema educativo gratuito, de saúde gratuito ou que pelo menos para aí se encaminhasse. Se houvesse um sistema de segurança social mais bem pensado e consolidado... Não é quem mais precisa que tem o cheque, o cheque é dado a todos.

Ora, se imaginarmos que o cheque do Stanley Ho tem o mesmo valor que o do motorista dele, isto deixa de fazer sentido. Há uma falta de equidade e justiça retributiva, que era a ideia que se teve. Isto não funciona. Em termos económicos, lembro-me de existência, antes da transição, de alguns sectores económicos com alguma actividade, por exemplo, o sector do vestuário, do brinquedo, das flores artificiais.

Existiam algumas indústrias que o contributo que davam para economia de Macau não se comparava ao Jogo, mas era uma economia diversificada. A tendência que temos visto é de, até há um ano e meio, um permanente crescimento das receitas do Jogo, mas mais grave que isso foi o crescimento da dependência da economia de Macau deste sector. Varreu-se das ruas o comércio, por substituição de investidores de Hong Kong, que tomaram conta do percurso pedonal para as Ruínas de São Paulo, por exemplo. Isto induziu o aumento das rendas para os comerciais e residentes, que não podem competir com estes investidores. A falta de diversificação é claramente um  ponto negativo, desde o fim do monopólio do Jogo.

O tamanho é também uma condicionante...

Sim, a pequenez é a chave de todos os problemas do território. Macau sempre foi pequeno para a procura de chineses que vinham para aqui para melhorar as suas condições de vida e esse facto originou, ainda durante a administração portuguesa, a falta de espaço quer para manufacturas, quer para as próprias pessoas conseguirem ter habitação. A solução alcançada foi a dos aterros. Isto incrementa-se no princípio do século XX. Poderia fazer algum sentido enquanto o exercício da soberania em Macau foi de Portugal. A partir da reunificação do território à China, embora havendo dois sistemas, o país é o mesmo, portanto, continuarmos todos ‘empacotados’ num país que é o mesmo. Parece-me um bocado despropositado.

Qual a solução?

A chave para os problemas de Macau, para a diversificação da economia, criação de mais sectores, etc., está no alargamento das fronteiras. Porque mesmo com a construção dos novos aterros, quando estes estiverem concluídos já não serão suficientes para diminuir a densidade populacional de Macau.

Chegámos a um ponto em que os aterros não resolvem problema nenhum, antes pelo contrário. Actualmente é do conhecimento geral que os aterros são extremamente prejudiciais ao ambiente, por razões óbvias. O que se está a fazer é uma violência para com o ecossistema. Portanto a grande solução é uma medida política, que tem que partir do Governo Central, e que tem de passar pelas autoridades de Cantão, no sentido de alargar.

É exequível? Neste momento?

Sim, claro. É difícil, sim, mas há espaços vagos. Por exemplo, à volta de Macau há imensas ilhas e essas sim, podia fazer-se um esforço para se aterrarem umas quantas para as unir. Mas há muito terreno vago aqui na província de Cantão. Em termos simples, Macau podia emprestar uma valia económica, um interesse e promoção em termos de valor económico desses próprios terrenos e, claro, podiam ser agregados a Macau, porque estão vazios. Até consigo ir mais longe: este alargamento traria soluções para todos os problemas de Macau, porque não há nenhum que não seja afectado. O trânsito, os preços do parqueamento no território, tudo isto está completamente sufocado. Isto poderia ainda estimular a criação de alternativas à indústria do Jogo.

Que tem apresentado valores mais baixos...

Sim. O que estamos a assistir neste momento é uma perda de apostadores. O que tem acontecido é que a indústria do Jogo começou a sofrer concorrência de outras partes onde o Jogo também está, e que estão a atrair muita gente, mesmo chineses, que vinham jogar para Macau, e que agora procuram Vietname, Singapura, etc. Deixámos de estar naquele deserto em  que só em Macau é que se jogava.

Defende então que é o momento ideal para alargarmos fronteiras?

Diria até que já começa a ser tarde. A pequenez de Macau não dá, por exemplo, para termos o número de veículos que temos. Estamos completamente sufocados por falta de espaço.

Viajemos até ao dia em que escreveu “Macau 1999 - O Desafio da Transição”. O escritor de hoje voltava a escrever este livro?

Não, não. As coisas evoluem e a minha própria capacidade crítica e o volume de informação que hoje tenho são diferentes, não são os mesmos de há 25 anos. Portanto, de certo que não o escreveria da mesma forma. Mas confesso que, a ideia essencial, ou seja, a defesa de um sistema político democrá-tico para Macau, continuaria a defendê-la.

Já defendeu que Macau tem liberdade, mas não democracia. Alguma vez teve?

Sim, teve, em anos muito recuados, no tempo em que Macau tinha uma Governação bastante assente no nosso municipalismo, havia democracia. Ora, era um Governo dos homens bons e estes homens bons eram escolhidos. Isto era o princípio e podia ter evoluído. Mas a própria administração portuguesa  deu cabo disso com a criação do primeiro Código Administrativo, querendo assegurar uma intervenção central mais evidente.

O Senado foi perdendo poder?

Sim, quando é nomeado o primeiro Governador começam a ser esvaziados os poderes do Senado. Porque o Senado é que era, de facto, o Governo dos homens bons de Macau. Não podemos é confundir Macau com aquilo que é hoje. Nessa altura, o Senado - que funcionava também como Câmara de Comércio - não misturava os interesses dos comerciantes portugeses com os dos chineses.

O sistema democrático que defende no livro teria efectivamente funcionado em Macau?

Não tenho a certeza, mas suponho que já houve uma grande evolução durante a aprovação do Estatuto Orgânico de Macau em relação ao sistema político anterior. Porque este último era um estatuto orgânico que era praticamente ‘chapa três’ para todas as antigas colónias, ou seja, não havia uma participação muito grande. Nesse sistema político, quando havia eleições, o recenseamento praticamente confinava-se aos portugueses e aos macaenses que trabalhavam aqui nos serviços públicos. Não existiam quase chineses nenhuns, porque não lhes interessava, não estavam habituados, não tinham interesse. Mas, claro, as coisas evoluíram e depois surge a medida do Almirante Almeida Costa, que abriu demasiado o sistema. Esta medida permitia que qualquer chinês chegado a Macau, nem que fosse no dia anterior, se estivesse legal podia votar. Isto também foi excessivo, pois temos de ligar os sistemas às realidades. Não sei se os condicionalismos políticos de Macau permitiam que um sistema democrático tivesse pernas para andar. Quem se iria opor, claro, seria o Governo Central da China.

Colocaria em perigo o poder de Pequim?

Não acredito. Com a pequenez da RAEM e a circunstância de isto ser desenhado no quadro da reunificação de Macau à China, penso que não. Não colocaria em perigo o poder do Partido Comunista na China, nem os projectos do Governo Central, nada. Isto é muito pequenino.

Como é que avalia este interesse e movimento das camadas mais jovens pela política, com o claro exemplo da manifestação contra o Regime de Garantias? Há um acordar para a democracia?

Sim, acredito que sim. Até porque hoje em dia há uma maior abertura dos jovens em Macau e, claro, uma maior exposição ao mundo. Não é só a televisão, mas creio que por virtude da internet os jovens estão mais expostos. É uma questão geracional, estas novas tecnologias... Depois há uma certa  ansiedade, pelo facto de na China existir uma limitação no acesso à internet e aqui em Macau não. Isto viabiliza o acesso à informação quase sem limites. Eu vejo isso também pelos meus alunos.

Desmistificando, dizer colónia referindo-nos a Macau é um erro?

É. Macau nunca foi uma colónia típica. Depois da Guerra do Ópio a China não tinha capacidade para defender os interesses de Portugal no território, como não conseguiu defender Hong Kong. A solução política que se encontrou foi integrar Macau no sistema colonial português. Mas foi uma integração para “inglês ver”, porque Macau sempre teve uma forma autónoma em relação ao poder central. Havia uma dependência do vice-rei da Índia, ao longo da história. Mas a integração de Macau no sistema colonial português é apenas para manter este território ligado a Portugal pelo perigo de invasão de  outras potências europeias. No fundo, muito de Macau continuou a ser decidido no próprio território. Portugal não devia ter tratado com tanto descuido Macau.

O livro foi entregue à Assembleia da República e, na altura, cada deputado tinha à sua frente o seu livro. Foi uma atitude pensada?

Perfeitamente. A intenção do livro, essa sim um bocado ingénua, era de influenciar os trabalhos de alteração do Estatuto Orgânico de Macau e em vez de se prolongar o sistema político que vinha de 1976, fazer uma abertura política. Isto tem uma razão. É que, na altura, havia o sentimento que Portugal tinha descolonizado mal as antigas colónias, que não perdeu Macau nessa altura porque a China não quis ficar com o território. Quando o livro ficou pronto tive como intenção influenciar. 

Mas não funcionou... 

Não se perdeu nada para além dos livros. Tenho a impressão que nenhum dos deputados leu uma página sequer. Os deputados estão lá, em princípio, para representar os partidos, no Governo ou na oposição, mas para além disso há uma actividade escondida dos deputados que é representarem e influenciarem as decisões dos grupos económicos para os quais trabalham. Aos grandes escritórios que fazem as leis com erros para depois, não só ganharem dinheiro da feitura dos projectos, como para suscitarem pareceres dos próprios defeitos da lei. Desde o início que isto é pensado. Só ingenuamente é que podemos pensar que as agendas dos deputados dependem de um programa do partido. Claro está que a essência da democracia são os programas dos partidos, que têm as suas prioridades, e depois o eleitorado é que, vendo os programas, escolhe conforme os seus desejos. Isto não acontece em Portugal. Já ninguém quer saber dos programas, nem os próprios partidos.


Afirmou que, durante as negociações que conduziram à Declaração Conjunta, os portugueses  “pediram pouco”.

A verdade é que não tínhamos de pedir nada, o que deveríamos ter tido eram objectivos. Acho que os nossos objectivos ficaram-se por muito pouco. Tive oportunidade de estar num jantar, onde esteve o embaixador Rui Medina, que foi o primeiro chefe da nossa delegação que negociou a Declaração  Conjunta, e ele próprio dizia que o nosso objectivo era chegar onde os ingleses chegaram nas  negociações sobre Hong Kong. Isto é um erro grave, foi um erro grave, porque a génese de Macau nada tem que ver com a de Hong Kong. Nada. Não chegámos aqui a humilhar a China com a derrota na Guerra do Ópio. Pronto, somos diferentes. Sempre fomos. Tivemos uma intervenção que nunca foi bélica. Logo à partida uma é um fenómeno colonial e a outra é o estabelecimento de um grupo de indivíduos que transformam Macau no centro do seu aparelho de comércio na zona. Devíamos ter feito valer esta distinção entre duas realidades bem distintas. E não ter apontado o nosso êxito em ficar ao nível dos ingleses. Foi pena.

Considera que os nossos representantes estavam preparados para as negociações?

Não, a nossa delegação estava muito mal informada sobre Macau. Um dos membros da delegação, que é meu amigo, tinha sido Secretário Adjunto em Macau por um ano, ou seja, muito pouco tempo. Embora possa ter consciência, ligado à economia, não conhecia a história de Macau, mas a verdade é que mais ninguém sabia. O que acho é que deveríamos ter recorrido a macaenses ilustres, que até viviam em Portugal. Podíamos ter feito o convite para que estes tivessem, connosco, construído uma espécie de grupo de trabalho, ou pequeno Conselho, com reuniões periódicas com os membros da delegação. Tudo para preparação.

Pecámos por não saber?

Sim, pecámos. Foi o que se vê. Devo apontar que o grande mérito para a transição de Macau é da República Popular da China.

“Um país, dois sistemas” funciona?

Penso que sim. Funciona, mas não numa base que tenho visto de alguma reivindicação. Há tempos alguém conhecido afirmou publicamente que ‘o segundo sistema somos nós’, ora isto não tem nada que ver com o segundo sistema. O segundo sistema resultou da necessidade de ultrapassar a visão do mundo que tinha Mao Tse Tung, em que era considerado que os Estados Unidos eram tigres de papel, que o capitalismo era o diabo e por aí fora. Isto mudou e percebeu-se que a única forma de se avançar para a reunificação da China, não era invadir Macau, Hong Kong e Taiwan e implementar o seu sistema, mas sim admitir que num longo período – de 50 anos – o sistema capitalista pudesse existir na China reunificada, com o sistema socialista em vigor na China. Penso que isto funciona porque nada foi alterado aqui para aproximar as teses capitalistas das teses socialistas, portanto, Macau funciona com a autonomia visível que se quer.

E na invisível?

Não sei, nos canais entre Macau e Pequim - os que não se vêem, não é que sejam subterrâneos, mas não se vêem talvez por falta de visibilidade. Não sei até que ponto é que há ingerências aqui. É muito provável que haja. Mas, no fundo, os dois sistemas, quer em Hong Kong, quer em Macau, funcionam pacificamente com o sistema socialista da China.

E Taiwan?

O problema de Taiwan e da sua reunificação passa muito pelos Estados Unidos da América. No dia em que os EUA tirarem o tapete a Taiwan, não há razão nenhuma para esta região não querer unir os dois lados do estreito.

Qual a sua opinião sobre a Lei Básica?

É um documento importante porque funciona como a mini-constituição de Macau, isto é, chegou-se à conclusão que o território deveria  ter este documento que fosse o vértice do nosso sistema político e legal. Ou seja, que nenhuma lei contrariasse a Lei Básica. Foi um documento importante, porque quem fazia a vez da Lei Básica, antes da transição, era o Estatuto Orgânico de Macau e portanto é natural que este fosse revisto.

O futuro?

As perspectivas de Macau são fantásticas se houver uma urgente revisão dos limites territoriais do território. Se não se fizer isto vai ser um inferno crescente, de falta de espaço, aumentos dos preços e da dependência económica do Jogo. Porque o Jogo retirou o espaço possível para outras alternativas, sufocou Macau. Isto da Economia é como os aviões com quatro motores, se algum deles avariar, o avião continua a voar. Mas só com um motor, se esse se avaria, o avião despenha-se. Se o único motor da Economia do território, que é o Jogo, se avariar, Macau vai passar mal.

Filipa Araújo

filipa.araujo@hojemacau.com.mo 

20.Dez.2015

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