Manuel da Silva Mendes (1867-1931): O homem e a sua circunstância[1]
Jorge Morbey, no lançamento, pela editora Livros do Oriente, do livro Manuel da Silva Mendes: memória e pensamento : Volume I : Arte – Filosofia e Religião – Cultura e tradições chinesas
Macau, 6 de Dezembro de 2017
“eu sou eu e a minha circunstância e se eu não a salvo a ela não me salvo eu”.
José Ortega Y Gasset
Filósofo espanhol
Introdução
Travei conhecimento com Manuel da Silva Mendes através das edições da Quinzena de Macau em Lisboa, em 1979.
Entre os livros editados para essa quinzena, contava-se o seu livro intitulado
“Macau – Impressões e Recordações”, já editado anteriormente, em resultado
da compilação dos artigos publicados por Silva Mendes na imprensa de Macau.
Essa compilação tinha sido feita por Luís Gonzaga Gomes para a Colecção “Notícias de Macau” e foi publicada em
1964, nos três volumes iniciais.
O ano de 1901, em que completou a idade de 34 anos, foi um ano chave na
vida de Silva Mendes:
- casou em Coimbra com Helena Danke, perceptora dos filhos de Bernardino
Machado, filha de pai alemão e mãe portuguesa;
- veio para Macau.
Não era um “Zé ninguém”, em
Portugal. Tinha-se licenciado em direito com 29 anos, no ano de 1896, na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde ingressara em 1891. Nesse
mesmo ano de 1896, em que se licenciou, publicou
o seu primeiro livro, editado em Coimbra:
“Socialismo Libertário ou
Anarchismo: História e Doutrina” : Coimbra
: 80 p.
“É a primeira e única
história geral do socialismo libertário escrita em Portugal /.../, lançada no mesmo ano (1896) em “que é promulgada uma severa lei contra o
anarquismo.[2] A Lei de
13 de Fevereiro de 1896.
Silva Mendes, na esteira de
outros historiadores e pensadores, está convicto de que a fonte matricial das
teorias socialistas libertárias ou anarquistas se pode encontrar na China, mais
propriamente no Tao Te Ching, atribuído a Lao Tse: seiscentos anos antes da nossa
era, Lao Tse, meditando sobre os destinos do homem, teria escrito em oitenta
paginas toda a teoria anarquista, tal como hoje a expoem Elisée Reclus e o
príncipe Kropotkine./.../. Da Ásia, enfim, teria vindo para a Europa o espírito
de revolta pelo veículo mongol, de Mazdec a Bakounine; a anarquia, mongólica na
sua origem, passaria para os arias, porque tudo nos veio da Ásia, tanto o bem
como o mal, a Bíblia, a ciência, a liberdade, a filosofia e a cólera”. [3]
1. A percepção do Mundo em Silva Mendes
Após a licenciatura, Silva Mendes regressa a Vila Nova de Famalicão onde se instala com escritório de advogado, escreve para os jornais e desempenha funções em instituições de utilidade pública locais.
A sua percepção do Mundo, antes de deixar Portugal, pode ver-se pelo que narra e se trasnscreve a seguir:
“Estava eu, no princípio do ano de 1901, no meu escritório de Vila Nova de Famalicão a fazer um requerimento, quando recebi inesperadamente este telegrama: Vagou lugar professor Liceu Macau responda convém telegraficamente (ass.) Santos Viegas. Li, reli e fui logo procurar um amigo meu, médico, que tinha consultório defronte.
— Leia isto. — Parabéns! — É que (atalhei) eu não
pedi lugar nenhum e não sei se quero ou não.
— Como assim?
— É o que lhe digo. Certo é que há meses,
monsenhor, tendo eu ido visitá-lo a São Tiago d’Antas, disse-me: o meu amigo
aqui não está bem; o seu republicanismo só o prejudica, isto aqui, regenerador
ou progressista; a república há-de vir para Portugal daqui a um século, se
vier...
Porque não vai o meu amigo para o ultramar?! Podia
arranjar lá colocação e dedicava-se a estudos, que para isso é que o meu amigo
tem mais feitio.
— E o que lhe respondeu?
— Eu respondi-lhe que para terra de degredados
não iria — a não ser, sim para lugar de bom clima, e ganhando bem; que aqui
auferia o suficiente para viver e não me convinha ir estrumar terra de
pretos. Mas diga-me o meu amigo: Macau, Macau é lá para a China, no
inferno, pois não é?...
— Olhe que eu também só sei isso... Mas vamos ver
o compêndio de geografia por onde estudei, há trinta anos, sim, mas Macau deve
estar ainda no mesmo sítio...”.
Aquilo que seria provavelmente o cumprimento de
uma simples comissão de serviço, transformou-se a breve trecho numa estadia de
uma vida.
A amizade com Monsenhor Santos Viegas, presidente da Câmara dos Deputados, e com Bernardino Machado, político e futuro Presidente da República, terá sido determinante para tomar a decisão que iria mudar por completo a sua vida.
O conhecimento que possuía de Macau e do Oriente em geral era muito, muito vago: “Confesso, causaram-me desagradabilíssima impressão os chineses. Eu fazia-os muito outros. Nunca tinha visto nenhum em carne e osso. Conhecia-os porém: conhecia-os das figuras das caixas de fósforos e do Café Chinês da Póvoa de Varzim. Era este café (onde perdi as ditas seis ricas libras) mobilado todo à chinesa! Mesas, cadeiras, sofás, alizares das paredes com embutidos de osso e madrepérola, pintados com pagodes, chineses de rabicho sobre robes de chambre e chinesas coradinhas, mignons, pequeninas, muito engraçadas, todas chim-cim, envolvidas em mantons de seda bordada, coisa rica... Eram estes chineses e estas chinesas que eu trazia na cabeça.
2. O que encontra em Macau
Os três censos da população, no tempo em que Silva
Mendes vive em Macau, indicam a seguinte população:
1910 |
74 866
|
1920 |
83 984 |
1927 |
157 175 |
A área conjunta da Península e das ilhas, após os
primeiros aterros, mantém-se, até 1936:
1912 |
Península |
Taipa |
Coloane |
Total |
Km2 |
3.4 |
2.3 |
5.9 |
11.6 |
A Economia de Macau que tinha como motor o
comércio entre a China e o Japão, o litoral do Índico e a Europa colapsara com
a ocupação britânica de Hong Kong e entrara num novo ciclo com a legalização
dos jogos de fortuna e azar, em 1847.
As tradições democráticas, após a
instauração da República em Portugal, a 5 de Outubro de 1910, jamais criaram
raízes na organização política e administrativa de Macau. A concepção
autocrática e personalista do poder, em boa parte apadrinhada pela burguesia
comercial e industrial chinesas, raro consentia intervenções críticas, vozes
dissonantes, nem sequer discordâncias formais.
São 15 os Governadores com que trava conhecimento em Macau. De Horta e Costa (1900-1902) a Mata Oliveira (1931-32).
3. Silva Mendes, os Macaenses e o Patuá ou Maquista
Manuel da Silva Mendes, professor de Português e
Latim no Liceu de Macau, durante vinte e cinco anos, escreveu em 1920 que nas
escolas de Macau “a matéria mais ingrata
de ensinar é a língua portuguesa e deitava as culpas para cima do patois
macaísta [que] não é senão um português estragado pelo contacto com a língua
chinesa” [4]
É estranha esta afirmação. Silva Mendes falaria
cantonense e deveria saber que o patuá era
muito semelhante ao Kristang de Malaca e que o léxico cantonense ocupava apenas 12% do seu léxico total, segundo Graciete Batalha.
A língua maquista falada em Macau foi um factor muito
importante na homogeneização dos macaenses. Remanescendo da lingua franca que durante séculos foi o
meio de comunicação entre comerciantes e missionários com os habitantes dos
portos das Índias e do Sudeste Asiático, foi influenciado significativamente
pelo papiá-cristang de Malaca e
minimamente influenciado pelo Cantonês
Papiá vem de um antigo verbo português que significa:
falar, conversar. Cristang, com C ou com K, é o mesmo que Cristão. Então,
Papiá-Cristang significa Língua Cristã. Como cristão e português eram
sinónimos no Oriente durante séculos (e em algumas regiões orientais ainda são)
língua cristã é o mesmo que língua portuguesa. Por ser mais fácil de aprender
do que o português padrão, a língua Maquista contribuiu decisivamente para a
integração de elementos estrangeiros na sociedade macaense.
As bolsas de crioulos de base portuguesa que
existem na Ásia seguem as regras que se aplicam às línguas crioulas como fenómenos
derivados da lei da inter-influência e falta de contacto com a língua padrão.
Isso provoca principalmente a simplificação da estrutura gramatical, causada
pelo isolamento ou ausência de uma língua padrão como expressão de domínio económico.[5]
O Patuá de Macau não é uma excepção às regras
acima. No entanto, existe uma caraterística única em Macau no que se refere à linguagem do
domínio económico. Em regra, a comunidade macaense detinha o poder económico em
Macau desde os primeiros tempos até ao final da Segunda Guerra Mundial. Era o
idioma desta comunidade – o Patuá -
que constituía a verdadeira expressão do domínio económico, não o português padrão.
Era no coração da comunidade macaense e sua principal instituição – o Senado de
Macau – que o poder económico se encontrava.
O relato escrito mais antigo da Língua Maquista ou
Patuá, que conheço, é o trabalho de
José Baptista de Miranda e Lima (1782-1848), euroasiático, nascido em Macau e
descendente, na linha materna, de uma antiga família macaense denominada
MIRANDA. Produziu uma obra de poesia de estilo clássico e um conjunto de poemas
satíricos em Patuá. Seu pai, José dos Santos Baptista e Lima, primeiro
professor régio de Macau - para onde viajou à sua custa - natural de Alpedriz,
Batalha, Portugal, relatava - em representação dirigida à Rainha D. Maria I, em
1775 - que tivera de ensinar a língua portuguesa, “ignorada totalmente pelos nacionais de Macau, que só fallavão um idioma
mixto de português e chino (?) corrupto,
e tal, que o referido professor necessitava muitas vezes de intérprete para
saber o que dizião os seus discípulos”. O mesmo erro de avaliação de Silva
Mendes.
O Bispo de Macau, D. Alexandre Pedrosa Guimarães,
em carta ao Rei D. José I, de 22 de Dezembro de 1774, refere que as mulheres
macaenses “falam uma linguagem, que é
mistura de todos os idiomas e gírias, imperceptível aos que não são criados no
país, por culpa dos maridos e pais de família, que há dois séculos não cuidaram
em introduzir o idioma português correcto.../.
Esta declaração do Bispo de Macau não contém o
erro de culpar o cantonense pelo declínio do português em Macau. Mas é uma
fortíssima manifestação de preconceito contra o patuá e os demais crioulos de
base portuguesa cuja origem se situa em Gil Vicente e no auto de sua autoria O Clérigo da Beira.
4. A ocupação de Hong Kong pelos ingleses, a desmacaízação de Macau e a gradual substituição do português-língua franca pelo inglês
A ocupação britânica de Hong Kong pôs termo ao
ciclo económico do comércio, em Macau.
Macau não tinha capital suficiente para investir, espaço para manufacturas, nem capacidade para competir com Hong Kong sob domínio inglês como porto-chave no Sudeste Asiático.
Os macaenses, qualificados e habilitados a falar cantonense, encontram excelentes oportunidades profissionais para mediar a relação entre colonos (britânicos) e colonizados (chineses). Primeiro em Hong, depois em Xangai, a seguir em Bangkok e, finalmente, em Tianjin. São estes os destinos da emigração dos macaenses que tem início após a ocupação britânica de Hong Kong e que desmacaísa Macau.
A língua portuguesa perde prestígio e falantes, a
favor do inglês. Isso é visível nos Excertos de um diálogo entre dois primos
macaenses, Augusta e João Fernandes, (ca. 1860):
A: O meu
primo lá em Hongkong
Não apprende o portuguez?
JF: Ah...portuguez eu já sabe,
[Ah..português eu já sei]
Agora
ta prendê inglez
[Agora aprendo inglês]
Antes
de eu vae pra Hongkong [Antes de eu
ir para Hong Kong]
De
onze anno para dose
[Dos onze anos para os doze]
Eu já
estudá garmática
[Estudei gramática]
Na
escola de Padre Jorje. [Na escola
do Padre Jorge]
A: Pergunto
se o primo ainda
Sabe
as regras de grammática?
JF: Eu nom pode lembrá tudo, [Não
posso lembrar tudo]
Ja
perdê bastante pratica.
[Perdi bastante prática]
A: Primo
falIa erradamente
Falla
apenas um “patois”.
JF: Masqui patuá, tudo gente
[Embora “patois”, toda a gente]
Entendê cusa eu falIa.
[Entende o que eu digo]
A: Sendo
algum portuguez novo
Não o
pod’ra entender.
JF: Com
minha zápi catápe, [Com os meus trejeitos (?)]
Logo
fazê comprendê
[Faço-me entender]
A: Primo é
rico, tem dinheiro,
Pode
aprender portuguez,
Ao
menos meia hora à noite,
Quanto
gastará por mez?
JF:
Portuguez oze em dia [O
português hoje em dia]
Só
serve pra pobretão [Só serve
ao pobretão]
Quem
más podê, prendê inglez [Quem tem meios, aprende inglês]
Pra
podê ganhá sua pão. [Para ganhar
o pão]
A: Primo
não sabe avaliar
O que
é a língua portuguesa.
JF: Só serve pra ovi missa [Serve apenas para ouvir missa]
Com
livro dentro d’igreza [Com o missal
na igreja]
Papá
fálá são asnera [O
pai disse que é asneira]
Querê
prendê portuguez, [Querer aprender
português,]
Que
unga lingu tão inutil [Porque uma
lingua tão inútil]
Devê
esquecê de unga vez. [Deve
esquecer-se de vez]
N’ Hongkong
tudo prendê inglez
[Em HK todos aprendem inglês]
Nôs,
china, como estranzero [Nós, os chinas e
os estrangeiros]
Fico por aqui. O melhor mesmo é lerem o livro. O
presente volume e os que se lhe seguem.
Obrigado.
Jorge Morbey
[1] Na óptica de um colonizado e não de um colonizador, isto é, na óptica de um falante de um dos crioulos de base portuguesa, o de Cabo Verde, como muitos daqueles Macaenses que eram falantes de Patuá ou Maquista, e de que Silva Mendes foi professor de Português.
[2] ARESTA, António: MANUEL DA SILVA MENDES, PROFESSOR E HOMEM DE CULTURA : Administração n.º 58, vol. XV, 2002-4.º, 1351-1374.
[3] idem
[4] Macau – Impressões e Recordações, 1979.
[5] Silva, Baltasar Lopes da: O Dialecto
Crioulo de Cabo Verde : Junta de Investigação do Ultramar : Lisboa : 1957.
[6] Se bem que datado de 1895 (“Renascimento” III, n°1, Imprensa Nacional. Macau. 1945) este diálogo humorístico retrata uma situação que me parece ter lugar uns quarenta anos antes. Afirmo isto, pela referência à “escola de Padre Jorje”. Trata-se da Escola Principal de Instrução Primária de que o Padre Jorge António Lopes da Silva (8-5-1817/14-7-1870), natural de Macau, foi director e mestre de português, entre 1847 e 1854 (V.TEIXEIRA, Pe. Manuel - ”A Educação em Macau”.Direcção dos Serviços de Educação e Cultura Macau 1992, p. 40). Seja uma ou outra a idade deste documento, não deixa de ser estranho que tenha sido publicado pela primeira vez em 1945 mercê do trabalho notável de Leopoldo Danilo Barreiros de salvar tudo o que existia do “Dialecto Português de Macau”.
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