Saturday, 12 June 2021

Manuel da Silva Mendes (1867-1931): O homem e a sua circunstância[1]

 

Jorge Morbey, no lançamento, pela editora Livros do Oriente, do livro Manuel da Silva Mendes: memória e pensamento : Volume I : Arte – Filosofia e Religião – Cultura e tradições chinesas

Macau, 6 de Dezembro de 2017

 

“eu sou eu e a minha circunstância e se eu não a salvo a ela não me salvo eu”.

José Ortega Y Gasset

Filósofo espanhol

 

Introdução

Travei conhecimento com Manuel da Silva Mendes através das edições da Quinzena de Macau em Lisboa, em 1979. Entre os livros editados para essa quinzena, contava-se o seu livro intitulado “Macau – Impressões e Recordações”, já editado anteriormente, em resultado da compilação dos artigos publicados por Silva Mendes na imprensa de Macau. Essa compilação tinha sido feita por Luís Gonzaga Gomes para a Colecção “Notícias de Macau” e foi publicada em 1964, nos três volumes iniciais.

O ano de 1901, em que completou a idade de 34 anos, foi um ano chave na vida de Silva Mendes:

- casou em Coimbra com Helena Danke, perceptora dos filhos de Bernardino Machado, filha de pai alemão e mãe portuguesa;

- veio  para Macau.

Não era um “Zé ninguém”, em Portugal. Tinha-se licenciado em direito com 29 anos, no ano de 1896, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde ingressara em 1891. Nesse mesmo ano de 1896, em que se licenciou,  publicou o seu primeiro livro, editado em Coimbra:  “Socialismo Libertário ou Anarchismo: História e Doutrina” : Coimbra : 80 p.

“É a primeira e única história geral do socialismo libertário escrita em Portugal /.../, lançada no mesmo ano (1896) em “que é promulgada uma severa lei contra o anarquismo.[2] A Lei de 13 de Fevereiro de 1896.

Silva Mendes, na esteira de outros historiadores e pensadores, está convicto de que a fonte matricial das teorias socialistas libertárias ou anarquistas se pode encontrar na China, mais propriamente no Tao Te Ching, atribuído a Lao Tse: seiscentos anos antes da nossa era, Lao Tse, meditando sobre os destinos do homem, teria escrito em oitenta paginas toda a teoria anarquista, tal como hoje a expoem Elisée Reclus e o príncipe Kropotkine./.../. Da Ásia, enfim, teria vindo para a Europa o espírito de revolta pelo veículo mongol, de Mazdec a Bakounine; a anarquia, mongólica na sua origem, passaria para os arias, porque tudo nos veio da Ásia, tanto o bem como o mal, a Bíblia, a ciência, a liberdade, a filosofia e a cólera”. [3]

 

1.       A percepção do Mundo em Silva Mendes

 Após a licenciatura, Silva Mendes regressa a Vila Nova de Famalicão onde se instala com escritório de advogado, escreve para os jornais e desempenha funções em instituições de utilidade pública locais.

 A sua percepção do Mundo, antes de deixar Portugal, pode ver-se pelo que narra e se trasnscreve a seguir:

 “Estava eu, no princípio do ano de 1901, no meu escritório de Vila Nova de Famalicão a fazer um requerimento, quando recebi inesperadamente este telegrama: Vagou lugar professor Liceu Macau responda convém telegraficamente (ass.) Santos Viegas. Li, reli e fui logo procurar um amigo meu, médico, que tinha consultório defronte. 

— Leia isto. — Parabéns! — É que (atalhei) eu não pedi lugar nenhum e não sei se quero ou não.

— Como assim?

— É o que lhe digo. Certo é que há meses, monsenhor, tendo eu ido visitá-lo a São Tiago d’Antas, disse-me: o meu amigo aqui não está bem; o seu republicanismo só o prejudica, isto aqui, regenerador ou progressista; a república há-de vir para Portugal daqui a um século, se vier...

Porque não vai o meu amigo para o ultramar?! Podia arranjar lá colocação e dedicava-se a estudos, que para isso é que o meu amigo tem mais feitio.

— E o que lhe respondeu?

— Eu respondi-lhe que para terra de degredados não iria — a não ser, sim para lugar de bom clima, e ganhando bem; que aqui auferia o suficiente para viver e não me convinha ir estrumar terra de pretos. Mas diga-me o meu amigo: Macau, Macau é lá para a China, no inferno, pois não é?...

— Olhe que eu também só sei isso... Mas vamos ver o compêndio de geografia por onde estudei, há trinta anos, sim, mas Macau deve estar ainda no mesmo sítio...”.

Aquilo que seria provavelmente o cumprimento de uma simples comissão de serviço, transformou-se a breve trecho numa estadia de uma vida.

A amizade com Monsenhor Santos Viegas, presidente da Câmara dos Deputados, e com Bernardino Machado, político e futuro Presidente da República, terá sido determinante para tomar a decisão que iria mudar por completo a sua vida. 

O conhecimento que possuía de Macau e do Oriente em geral era muito, muito vago: “Confesso, causaram-me desagradabilíssima impressão os chineses. Eu fazia-os muito outros. Nunca tinha visto nenhum em carne e osso. Conhecia-os porém: conhecia-os das figuras das caixas de fósforos e do Café Chinês da Póvoa de Varzim. Era este café (onde perdi as ditas seis ricas libras) mobilado todo à chinesa! Mesas, cadeiras, sofás, alizares das paredes com embutidos de osso e madrepérola, pintados com pagodes, chineses de rabicho sobre robes de chambre e chinesas coradinhas, mignons, pequeninas, muito engraçadas, todas chim-cim, envolvidas em mantons de seda bordada, coisa rica... Eram estes chineses e estas chinesas que eu trazia na cabeça. 

2.       O que encontra em Macau

Os três censos da população, no tempo em que Silva Mendes vive em Macau, indicam a seguinte população:                         

1910

  74 866  

1920

  83 984

1927

157 175

 

A área conjunta da Península e das ilhas, após os primeiros aterros, mantém-se, até 1936:

1912

Península

Taipa

Coloane

Total

Km2

3.4

2.3

5.9

11.6

 

A Economia de Macau que tinha como motor o comércio entre a China e o Japão, o litoral do Índico e a Europa colapsara com a ocupação britânica de Hong Kong e entrara num novo ciclo com a legalização dos jogos de fortuna e azar, em 1847.  

 As tradições democráticas, após a instauração da República em Portugal, a 5 de Outubro de 1910, jamais criaram raízes na organização política e administrativa de Macau. A concepção autocrática e personalista do poder, em boa parte apadrinhada pela burguesia comercial e industrial chinesas, raro consentia intervenções críticas, vozes dissonantes, nem sequer discordâncias formais.

São 15 os Governadores com que trava conhecimento em Macau. De Horta e Costa (1900-1902) a Mata Oliveira (1931-32).

 

3.       Silva Mendes, os Macaenses e o Patuá ou Maquista

Manuel da Silva Mendes, professor de Português e Latim no Liceu de Macau, durante vinte e cinco anos, escreveu em 1920 que nas escolas de Macau “a matéria mais ingrata de ensinar é a língua portuguesa e deitava as culpas para cima do patois macaísta [que] não é senão um português estragado pelo contacto com a língua chinesa” [4]

É estranha esta afirmação. Silva Mendes falaria cantonense e deveria saber que o patuá era muito semelhante ao Kristang de Malaca e que o léxico  cantonense ocupava apenas 12% do seu  léxico total, segundo Graciete Batalha.

A língua maquista falada em Macau foi um factor muito importante na homogeneização dos macaenses. Remanescendo da lingua franca que durante séculos foi o meio de comunicação entre comerciantes e missionários com os habitantes dos portos das Índias e do Sudeste Asiático, foi influenciado significativamente pelo papiá-cristang de Malaca e minimamente influenciado pelo Cantonês

Papiá vem de um antigo verbo português que significa: falar, conversar. Cristang, com C ou com K, é o mesmo que Cristão. Então, Papiá-Cristang significa Língua Cristã. Como cristão e português eram sinónimos no Oriente durante séculos (e em algumas regiões orientais ainda são) língua cristã é o mesmo que língua portuguesa. Por ser mais fácil de aprender do que o português padrão, a língua Maquista contribuiu decisivamente para a integração de elementos estrangeiros na sociedade macaense.

As bolsas de crioulos de base portuguesa que existem na Ásia seguem as regras que se aplicam às línguas crioulas como fenómenos derivados da lei da inter-influência e falta de contacto com a língua padrão. Isso provoca principalmente a simplificação da estrutura gramatical, causada pelo isolamento ou ausência de uma língua padrão como expressão de domínio económico.[5]

O Patuá de Macau não é uma excepção às regras acima. No entanto, existe uma caraterística  única em Macau no que se refere à linguagem do domínio económico. Em regra, a comunidade macaense detinha o poder económico em Macau desde os primeiros tempos até ao final da Segunda Guerra Mundial. Era o idioma desta comunidade – o Patuá - que constituía a verdadeira expressão do domínio económico, não o português padrão. Era no coração da comunidade macaense e sua principal instituição – o Senado de Macau – que o poder económico se encontrava.

O relato escrito mais antigo da Língua Maquista ou Patuá, que conheço, é o trabalho de José Baptista de Miranda e Lima (1782-1848), euroasiático, nascido em Macau e descendente, na linha materna, de uma antiga família macaense denominada MIRANDA. Produziu uma obra de poesia de estilo clássico e um conjunto de poemas satíricos em Patuá. Seu pai, José dos Santos Baptista e Lima, primeiro professor régio de Macau - para onde viajou à sua custa - natural de Alpedriz, Batalha, Portugal, relatava - em representação dirigida à Rainha D. Maria I, em 1775 - que tivera de ensinar a língua portuguesa, “ignorada totalmente pelos nacionais de Macau, que só fallavão um idioma mixto de português e chino (?) corrupto, e tal, que o referido professor necessitava muitas vezes de intérprete para saber o que dizião os seus discípulos”. O mesmo erro de avaliação de Silva Mendes.

O Bispo de Macau, D. Alexandre Pedrosa Guimarães, em carta ao Rei D. José I, de 22 de Dezembro de 1774, refere que as mulheres macaenses “falam uma linguagem, que é mistura de todos os idiomas e gírias, imperceptível aos que não são criados no país, por culpa dos maridos e pais de família, que há dois séculos não cuidaram em introduzir o idioma português correcto.../.

Esta declaração do Bispo de Macau não contém o erro de culpar o cantonense pelo declínio do português em Macau. Mas é uma fortíssima manifestação de preconceito contra o patuá e os demais crioulos de base portuguesa cuja origem se situa em Gil Vicente e no auto de sua autoria O Clérigo da Beira.

 

4.       A ocupação de Hong Kong pelos ingleses, a desmacaízação de Macau e a gradual substituição do português-língua franca pelo inglês 

A ocupação britânica de Hong Kong pôs termo ao ciclo económico do comércio, em Macau.

Macau não tinha capital suficiente para investir, espaço para manufacturas, nem capacidade para competir com Hong Kong sob domínio inglês como porto-chave no Sudeste Asiático. 

Os macaenses, qualificados e habilitados a falar cantonense, encontram excelentes oportunidades profissionais para mediar a relação entre colonos (britânicos) e colonizados (chineses). Primeiro em Hong, depois em Xangai, a seguir em Bangkok e, finalmente, em Tianjin. São estes os destinos da emigração dos macaenses que tem início após a ocupação britânica de Hong Kong e que desmacaísa Macau. 

A língua portuguesa perde prestígio e falantes, a favor do inglês. Isso é visível nos Excertos de um diálogo entre dois primos macaenses, Augusta e João Fernandes, (ca. 1860):

A:  O meu primo lá em Hongkong

                  Não apprende o portuguez?

JF: Ah...portuguez eu já sabe,                                         [Ah..português eu já sei]

      Agora ta prendê inglez                                              [Agora aprendo inglês]

 

      Antes de eu vae pra Hongkong                                 [Antes de eu ir para Hong Kong]

      De onze anno para dose                                            [Dos onze anos para os doze]

      Eu já estudá garmática                                              [Estudei gramática]

      Na escola de Padre Jorje.                                          [Na escola do Padre Jorge]

 

A:  Pergunto se o primo ainda

      Sabe as regras de grammática?

JF: Eu nom pode lembrá tudo,                                         [Não posso lembrar tudo]

      Ja perdê bastante pratica.                                           [Perdi bastante prática]

 

A:  Primo falIa erradamente

      Falla apenas um “patois”.

JF: Masqui patuá, tudo gente                                          [Embora “patois”, toda a gente]

      Entendê cusa eu falIa.                                                [Entende o que eu digo]

 

A:   Sendo algum portuguez novo

       Não o pod’ra entender.

JF:  Com minha zápi catápe,                                            [Com os meus trejeitos (?)]

       Logo fazê comprendê                                                [Faço-me entender]

 

A:  Primo é rico, tem dinheiro,

      Pode aprender portuguez,

      Ao menos meia hora à noite,

      Quanto gastará por mez?

 

JF:  Portuguez oze em dia                                      [O português hoje em dia]

       Só serve pra pobretão                                      [Só serve ao pobretão] 

       Quem más podê, prendê inglez                       [Quem tem meios, aprende inglês]

       Pra podê ganhá sua pão.                                  [Para ganhar o pão]

 

A:  Primo não sabe avaliar

      O que é a língua portuguesa.

JF: Só serve pra ovi missa                                      [Serve apenas para ouvir missa]

      Com livro dentro d’igreza                                [Com o missal na igreja]

 

      Papá fálá são asnera                                          [O pai disse que é asneira]

      Querê prendê portuguez,                                   [Querer aprender português,]

      Que unga lingu tão inutil                                  [Porque uma lingua tão inútil]

      Devê esquecê de unga vez.                               [Deve esquecer-se de vez]

 

      N’ Hongkong tudo prendê inglez                     [Em HK todos aprendem inglês]        

      Nôs, china, como estranzero                            [Nós, os chinas e os estrangeiros]          

A: Primo se assim continua                                                                                                                   Fica sendo malaqueiro[6]


Fico por aqui. O melhor mesmo é lerem o livro. O presente volume e os que se lhe seguem.

Obrigado.

Jorge Morbey



[1] Na óptica de um colonizado e não de um colonizador, isto é, na óptica de um falante de um dos crioulos de base portuguesa, o de Cabo Verde, como muitos daqueles Macaenses que eram falantes de Patuá ou Maquista, e de que Silva Mendes foi professor de Português.

[2]   ARESTA, António: MANUEL DA SILVA MENDES, PROFESSOR E HOMEM DE CULTURA : Administração n.º 58, vol. XV, 2002-4.º, 1351-1374.

[3] idem

[4] Macau – Impressões e Recordações, 1979.

[5] Silva, Baltasar Lopes da: O Dialecto Crioulo de Cabo Verde : Junta de Investigação do Ultramar : Lisboa : 1957.

[6] Se bem que datado de 1895 (“Renascimento” III, n°1, Imprensa Nacional. Macau. 1945) este diálogo humorístico retrata uma situação que me parece ter lugar uns quarenta anos antes. Afirmo isto, pela referência à “escola de Padre Jorje”. Trata-se da Escola Principal de Instrução Primária de que o Padre Jorge António Lopes da Silva (8-5-1817/14-7-1870), natural de Macau, foi director e mestre de português, entre 1847 e 1854 (V.TEIXEIRA, Pe. Manuel - ”A Educação em Macau”.Direcção dos Serviços de Educação e Cultura Macau 1992, p. 40). Seja uma ou outra a idade deste documento, não deixa de ser estranho que tenha sido publicado pela primeira vez em 1945 mercê do trabalho notável de Leopoldo Danilo Barreiros de salvar tudo o que existia do “Dialecto Português de Macau”. 

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