Sunday, 13 June 2021

 

In Memoriam – Aguinaldo Fonseca

                                                                                                                                            Jorge Morbey*

 

Aguinaldo Brito Fonseca, poeta cabo-verdiano da geração do “Suplemento Cultural”, com Gabriel Mariano, Ovidio Martins, Onésimo Silveira, Carlos Alberto Monteiro Leite,  faleceu na madrugada de sábado, 25 de Janeiro de 2014, em Lisboa. Tinha 92 anos e estava radicado em Portugal desde a segunda metade dos anos 40 do séc. XX.

Era natural da cidade do Mindelo, na Ilha de S. Vicente, onde nasceu a 22 de Setembro de 1922. Foi funcionário bancário e pastor nazareno.  Publicou um único livro de poesia, com o título “Linha do horizonte”, mas tem poemas de sua autoria em diversas publicações de língua portuguesa.

Além do Suplemento Cultural, publicou poemas em Claridade, Boletim Cabo Verde, entre outras revistas e publicações.  Os seus poemas fazem parte de várias antologias, uma delas “No Reino do Caliban”, organizada por Manuel Ferreira. A sua poesia está traduzida  em vários países.

Aguinaldo Fonseca relatou a Michel Laban, investigador argelino das literaturas lusófonas, que foi Amílcar Cabral, então estudante em Portugal e seu amigo, que lhe sugeriu o nome do livro “Linha do horizonte”, que viria a ser publicado pela Casa dos Estudantes do Império, em 1951. Aliás, um dos poemas desse livro, “Nova poesia”, é dedicado ao futuro líder africano.

Essa amizade e convivência com Amílcar Cabral não terão sido alheias à assunção de um fortíssimo sentimento de africanidade plasmado na sua poesia e que a liga à poesia da negritude. Aguinaldo Fonseca, é preciso reconhecê-lo,  foi o primeiro poeta cabo-verdiano  a colocar  África na essência da sua poesia.

Designado por “poeta esquecido”, pelo longo silêncio que sobre ele se abateu,  questionado por Michel Laban se deixara de acreditar no poder da poesia, Aguinaldo Fonseca respondeu: “para mim, poesia é vida”  e acrescentou que já não sentia  necessidade de publicar.

Para além de uma antologia breve da poesia de Aguinaldo Fonseca, para contextualizar essa mesma poesia na homenagem que aqui lhe prestamos, publicamos também um artigo de Amílcar Cabral intitulado “APONTAMENTOS SOBRE A POESIA CABOVERDIANA” (publicado no Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952) e reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria – Unidade e Luta pela editora Seara Nova, 1976, p. 25-29) que termina invocando o último verso do poema “Sonho” de Aguinaldo Fonseca: “Outra terra dentro da nossa terra”.

 

Mamã, peço-te perdão

Por todas as mentiras que contei.

Foi sem querer…

A culpa foi do porteiro da vida

Que me indicou uma porta

Que não era a porta da minha vida.

 

 

 

SONHO

Mamã,

Já não vou partir,

Vou ficar aqui.

Esta terra é pobre, mas é minha terra.

Mamã,

este sonho meu,

é de nova vida

é de outra terra dentro da nossa terra.

Meus sonhos

   de asas desfeitas pelo sol da vida

   deslocam-se como répteis sobre a areia quente

   e enroscam-se raivosos

   no cordame petrificado da fragata

   das mil partidas frustradas.

   Ah meu avô escravo

   como tu

   eu também estou encarcerado

   neste navio fantasma

   eternamente encalhado

   entre mar e céu.

   Como tu

   também tenho a esmola do luar

   e por amante

   essa mulher de bruma, universal, fugaz,

   que vai e vem

   passeando à beira-mar

   ou cavalgando sobre o dorso das borrascas

   chamando, chamando sempre,

   na voz do vento e das ondas.

 

MAGIA NEGRA

Abro

  De par em par, a janela

  Ao convite da noite tropical.

  E a noite enche o meu quarto de estrelas vivas.

  Nesta hora morna e calma,

  Profunda e densa como um túnel,

  O rumorejar longínquo das palmeiras

  Varrendo o Céu

  É misteriosa voz do negro martirizado.

  Prendo os meus gestos e o meu grito abafo.

  Silêncio…

  No poço da paz nocturna

  Interceptada

  Pela orgia sincopada

  Das estrelas e dos grilos,

  Arrasta-se o vão lamento

  Da África dos meus Avós,

  Do coração desta noite,

  Feridos, sangrando ainda

  Entre suores e chicotes.

  E a Lua cheia veio

  À voz quente do batuque,

  Faz feitiço…

  E o negro dorme

  Ser santo um dia

 

 HERANÇA

            O meu avô escravo

            legou-me estas ilhas incompletas

            este mar e este céu.

            As ilhas

            por quererem ser navios

            ficaram naufragadas

            entre mar e céu.

            Agora

            aqui vivo eu

            e aqui hei-de morrer.

 

MÃE NEGRA

A mãe negra embala o filho.

Canta a remota canção

Que seus avós já cantavam

Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu

Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,

Que o céu

Às vezes também é negro.

No céu

Tão estrelado e festivo

Não há branco, não há preto,

Não há vermelho e amarelo.

—Todos são anjos e santos

Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa

Nem carinhos de ninguém…

A mãe negra é triste, triste,

E tem um filho nos braços…

Mas olha o céu estrelado

E de repente sorri.

Parece-lhe que cada estrela

É uma mão acenando

Com simpatia e saudade…

 

CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA

Eu sei que fico.

Mas o meu sonho irá

pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.

Eu sei que fico

Mas o meu sonho irá …

Eu sei que fico

Mas o meu sonho irá

Nos frutos, nos colares

E nas fotografias da terra,

Comprados por turistas estrangeiros

Felizes e sorridentes.

Eu sei que fico mas o meu sonho irá …

 

Eu sei que fico

Mas o meu sonho irá

Metido na garrafa bem rolhada

Que um dia hei de atirar ao mar.

Eu sei que fico

Mas o meu sonho irá …

sei que fico

Mas o meu sonho irá

Nos veleiros que desenho na parede.

 

POVO

É sempre a mesma história repetida

É sempre o mesmo lado e a mesma fome

É sempre a mesma vida mal vivida

É sempre a mesma angústia desgrenhada

De quem naufraga em terra olhando o mar

O rubro desespero, a voz magoada

é o sonho bom desfeito ao acordar

 

É sempre esse horizonte de fuligem

É sempre esse aranhar em duro chão

Como fúria até ao centro da vertigem

Em busca da raiz da solução.

 

Círculo

Nascemos, morremos,

Tornamos a nascer em cada sonho, cada ideia, cada gesto.

Cada dia que chega é flor que se abre ao sol

Com novo cheiro, nova cor, nova beleza.

Nossos desejos são asas que se elevam

Cruzando o céu da vida em voo largo

Mas nunca chega, nunca páram

Enquanto corre o sangue e a vida cresce e rola.

O fim de um sonho é o começo de outro

Cada horizonte outro horizonte aponta,

E uma esperança morta outra esperança aquece..

Há magoas, alegrias, desesperos

E a gente insatisfeita

Enquanto ri ou chora

Ou canta ou fica triste

Vai nascendo, morrendo e renascendo

Cada dia, cada hora, cada instante

Noutra vida, noutro sonho, noutra esperança

 

Revolta

Revolta dentro do peito

Por aquilo que não fiz

E que devia ter feito.

Revolta dentro de mim

Por tropeçar em mim mesmo,

Por não saber onde estou…

Por caminhar tanto a esmo

Que trago os passos perdidos

Nos próprios passos que dou.

Revolta desde menino

Por tantas horas perdidas

A procurar o destino

Nas sombras doutros destinos

Revolta crua e sem fim(…)

Tantos pedaços de mim

Que destrocei sem saber!…

Revolta crua e sem fim,

Revolta triste e infeliz,

Por trazer esta revolta

Fechada dentro de mim,

Num verso que nunca fiz.

 

 

 

 

 

“APONTAMENTOS SOBRE A POESIA CABOVERDIANA”

 Amílcar Cabral

                          “Não me doi meu particular.

                          Peno cilícios da comunidade.

                          Água dum rio doce, entrei no mar

                          (Miguel Torga, “Cântico do homem”)     

 

I

Quando se debruça sobre o conteúdo da poesia caboverdiana, em busca do seu valor real, duas fases, nitidamente distintas, se mostram evidentes: a anterior ao aparecimento da revista Claridade, e a que começa com este acontecimento literário. Tão distintas são essas duas fases, que Osório de Oliveira não hesita em afirmar: “só agora (isto é, com Claridade) se pode falar da Literatura Cabo-verdiana”.

Significará isso que tudo quanto foi escrito antes das produções dos colaboradores da “Claridade” não tem valor literário? Que só merece ser considerado como Poesia, na verdadeira acepção do termo, o que escreveram os poetas da “Claridade” e os que se lhes seguiram?

Postas estas interrogações, está-se, necessariamente, perante o discutidíssimo problema da definição de Poesia, como expressão artística. Não constitui objeto deste apontamento abordar tal problema. Todavia, impõe-se uma tomada de posição, para que, quando menos, se possa ser coerente nas afirmações que tiverem de ser feitas.

A poesia, como qualquer manifestação artística e apesar de toda a característica individual, emanente da personalidade do Poeta, é necessariamente um produto do meio em que tem expressão. Quer dizer: por maior que seja a influência do próprio indivíduo sobre a obra que produz, esta é sempre, em última análise, um produto do complexo social em que foi gerada. Aliás, esta afirmação não passa dum lugar comum em todas as controvérsias referentes aos problemas da Arte, na actualidade.

Ao falar de controvérsias, não se esquece que não rareiam as vozes discordantes que se levantam para defender a exclusiva influência do complexo individual na manifestação artística. Ao referir este facto, está-se implicitamente perante a não menos discutida questão de se saber se a arte deve ser “dependente” ou “independente”, isto é, presente ou alheia aos problemas sociais do meio em que é produzida; ou, noutras palavras muito vulgarizadas actualmente: se a arte deve ser “interessada” ou “desinteressada”.

Assim, enquanto vai crescendo, dia a dia, o conjunto daqueles que pretendem ou querem uma arte com função social, cerram-se as fileiras daqueles que, teimosamente, arvoram a esfarrapada bandeira duma arte absolutamente independente, da chamada “arte pela arte”. E, ao qualificar-se de esfarrapada a bandeira dos que defendem uma arte “desinteressada”, está-se, ainda que de maneira implícita, tomando posição.

É que, na realidade, parece – e com este ponto de vista não se está metendo nenhuma lança em África – que, a qualquer das questões postas atrás: arte função do meio? arte com função social? – só pode ser dada uma resposta afirmativa. Não é possível considerar a arte (a Poesia, no caso presente) independentemente do homem-ser-social. A arte é e tem de ser, para que mereça tal designação, um produto do homem para homens.

A Poesia tem as suas raízes (passe o termo) mergulhadas nas condições socioeconômicas em que é criada. Note-se que não se afirma ser ela uma função exclusiva dessas condições. Não é, nem poderia ser, alheia a influência de outra origem, como a moral, a religião, as ciências, a filosofia, etc…

Quanto à sua função social, parece que o que se poderá discutir é qual a natureza da função social de determinada obra poética e, não, se essa função existe. Quer dizer: há uma acção recíproca entre o complexo social e a obra poética, admitindo que esta tenha algum mérito. O que interessa determinar é se tal obra constitui um bem ou um mal para aquele complexo, isto é, se o serve ou se o trai.

A evolução das sociedades humanas está na base de toda a evolução literária. Mesmo quando estes dois fenómenos se apresentam desarmónicos ou antagónicos, isto significa apenas que não se desenvolvem concomitantemente. A evolução das sociedades humanas é, por sua vez, uma função dos factores determinantes da estructura económica em que aquelas assentam.

 

II

A Poesia Cabo-Verdiana, como qualquer outra, só poderá ser compreendida se considerada em relação ao ambiente material e humano vivido pelo Poeta. Assim, seria conveniente determinar quais as características do meio cabo-verdiano que estiveram na base das manifestações das duas poesias atrás referidas: a anterior à “Claridade” e a que começa com esta revista.

A primeira, representada por Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Cardoso, Januário Leite, etc., caracteriza-se por um desprendimento quase total do ambiente, sublimando-se numa expressão poética que, excepção feita a algumas obras de E. Tavares e P. Cardoso, nada tem de comum com a terra e o povo do Arquipélago. Enquanto a poesia de J. Leite, por exemplo, oferece, nos seus sonetos, a expressão da reacção puramente sentimental, do Poeta, perante fenómenos que a ele e só a ele interessam, a de José Lopes traduz, mais do que qualquer outra, o cunho de cultura clássica, desligado do meio, que caracteriza a formação ideológica dos Poetas anteriores à “Claridade”.

Aliás, é precisamente nesse formação, adquirida principalmente no Seminário de S. Nicolau, como o faz notar Osório de Oliveira, ou por um louvável esforço pessoal, que reside a razão de ser das características da Poesia anterior à “Claridade”. Possuidores de uma cultura clássica, que em alguns atinge um grau verdadeiramente elevado, os Poetas da geração em referência esquecem a terra e o povo. De olhos fixos no que aprenderam nos livros e que talvez suponham insuperável, pouco mais conseguem do que imitar os autores seus conhecidos, produzindo uma Poesia em que o amor, o sofrimento pessoalíssimo, a exaltação patriótica e o saudosismo, são traços comuns.

Não se nega o mérito dalgumas das suas obras. Alguns sonetos de Januário Leite, composições de E. Tavares, esta ou aquela obra de J. Lopes e P. Cardoso, são – há que reconhecê-lo – de valor incontestável. Pode-se mesmo afirmar que em E. Tavares (ao cantar o ambiente bravense) e P. Cardoso (ao traduzir, do crioulo, quadras populares do Fogo) encontra-se já algo do que, mais tarde, se tornaria realidade nos Poetas da nova geração: uma comunhão íntima entre o Poeta e o seu mundo.

É ainda a influência da cultura clássica que caracteriza o aspecto formal da Poesia em referência: o respeito sagrado à métrica, a confrangedora submissão às algemas da rima.

Mas, como descortinar a influência do meio socioeconómico sobre estes artistas? Atente-se nas seguintes condições:

O povo, em geral, vive alheio à cultura e às manifestações artísticas. O Seminário, em S. Nicolau, por poucos pode ser frequentado. Ministra-se nele uma cultura clássica, à qual se ligam fortemente os que tiveram a felicidade de recebê-la. Tão forte é o elo, que os seminaristas (ou os autodidactas) de talento, encontrando abertas as portas duma vida onde podem desfrutar de posições de relevo, ignoram ou esquecem as realidades que os cercam. Opera-se neles a supremacia de tudo quanto é meramente filosófico, religioso ou moral, sobre o económico.

Melhor: é a própria condição económica em que vivem que facilita aquele alheamento das realidades cabo-verdianas. A terra e o povo estão distantes. Este, nas letras da Morna, canta os seus sofrimentos e amores, enquanto os poetas compõem sonetos perfeitos para exaltar um sentimento qualquer, as tranças e os olhos da hegéria, as belezas da Grécia ou uma data célebre da História

 

III

Bruscamente, porém, opera-se a transformação. A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, – e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano “anónimo”, enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional – e felizmente intencional – do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade.

Aliás Jorge Barbosa, Oswaldo Alcantara (Baltazar Lopes), Corsino de Azevedo, Manuel Lopes, Teixeira de Sousa, Jaime de Figueiredo, etc, são os pioneiros do acontecimento.

Os poetas, agora, são homens-comuns que caminham de mãos dadas com o povo, e de pés fincados na terra. Cabo Verde não é o sonhado jardim hesperitano, mas, sim, o “Arquipélago” e o “Ambiente”, onde as árvores morrem de sede, os homens de fome – e a esperança nunca morre. O mar já não tem sereias e as ondas não beijam a praia. O mar é a estrada da libertação e da saudade, e o marulhar das vagas é a tentação constante, a lembrança permanente do “desespero de querer partir e de ter de ficar”. Até o caminho qualquer, “amassado pelo gado que a seca matou”, tem vida, assim como “os coqueiros esguios” e o “céu azul e ardente que não promete chuva”.

A terra, “a terra mártir” – é a Mamã que “alimenta” os filhos “com a ternura das suas entranhas”; que não morreu, mas jaz adormecida “numa migalha de terra no meio do mar”.

A voz do Poeta, agora, é a voz da própria terra, do próprio povo, da própria realidade cabo-verdiana.

Como se operou tão profunda transformação na Poesia de Cabo Verde? Tal modificação corresponderá a uma evolução do complexo económico-social? Atente-se nas seguintes condições:

O povo, na generalidade, continua alheio a toda a manifestação artística e cultural. A cultura é ainda o apanágio dum sector restrito da sociedade cabo-verdiana. Mas é precisamente neste sector que se operou uma modificação.

O Liceu, com a democratização do ensino, independente da religião, trouxe maiores facilidades de acesso à Cultura. Aumentou, na fileira dos intelectuais, o número de elementos provenientes da chamada “gente humilde”. Além disso, o fulcro da intelectualidade cabo-verdiana, passando de S. Nicolau para a cidade do Mindelo, à beira do Porto Grande, encontrou-se em contacto mais amplo com o Mundo, onde se operava, dia a dia, a evolução da mentalidade humana, concretizando-se as aspirações do homem.

É de admitir-se que tal transformação resultou principalmente desse contacto, em essencial com a literatura metropolitana e brasileira. Na realidade, as primeiras produções da Claridade, manifestam uma certa influência da corrente literária que caracterizou o Presencismo e da poesia brasileira de então. Influência que se limitou a mudar as directrizes da poesia cabo-verdiana. O Poeta, em vez de olhar para as nuvens, devia buscar o sentido da sua poesia na realidade em que vive.

Infelizmente, a primeira fase da Claridade foi um relâmpago. Mas foi o suficiente para a nova geração de Poetas cabo-verdianos poder ver claro, e compreender que a Poesia de Cabo Verde só poderia ter personalidade, possuir um real valor, se, sem intenção premeditada, fosse “os olhos e a boca” do Arquipélago das secas.

Anos volvidos, aparece a “Certeza”, folha infelizmente efémera, fundada por estudantes do Liceu. Nela, Arnaldo França, Nuno Miranda, Tomaz Martins, G. Rocheteau e outros jovens, ensaiam uma nova mensagem e mostram que compreenderam a dos Poetas da Claridade. Mas a “Certeza” não é apenas uma compreensão da aaa Claridade.

O seus Poetas – o contacto com o Mundo é cada vez maior – sentem e sabem que, para além da realidade cabo-verdiana, existe uma realidade humana, de que não podem alhear-se. Sentem e sabem que não é apenas em Cabo Verde que “há gritos lancinantes pela noite silenciosa” e “homens vagabundos” que “fitam estrelas que a madrugada esculpiu”. E dizem, querem dizer “um canto… que cruze nos mares mais distantes e entre nos corações dos homens… um canto com contornos de paz e relevos de esperança”. De esperança.

 

IV

Mas a evolução da Poesia Cabo-Verdiana não pode parar. Ela tem de transcender a “resignação” e a “esperança”. A “insularidade total” e as secas não bastam para justificar uma estagnação perene.

As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de “querer partir”, não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas – os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum – compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.

Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.

O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um “Amanhã” diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: “Em vez dos campos sem nada…” E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a “vivificação da Vida”.

O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o “naufrágio em terra” do povo a que pertence. Retrata os “homens calados” sofrendo a “dor da Terra-Mãe…num abandono de não ter remédio”. Dos homens, “presos na cadeia da desesperança”. E o seu sonho, não é de “querer partir”: é de

“Outra terra dentro da nossa terra”.

 Jornal Ponto Final, 27.Jan.2014 


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